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MEMÓRIA Beto Figueiredo presente Confira, a seguir, o depoimento de quem conheceu e conviveu com o professor e diretor teatral, nascido em Três Lagoas em 21 de fevereiro de 1956 17 DEZ 2024 • POR Marcos Pierry • 10h00
O historiador, professor e encenador teatral Roberto Figueiredo no traço do ilustrador Eder Flávio  

Nos conhecemos logo que eu cheguei em Campo Grande (vindo de Ladário). Lá se vão quase 40 anos. Pensar nessa trajetória de amizade traz vários assuntos. Festas, teatro, convivência diuturna, depois a universidade.

Cheguei a ser professor substituto do Roberto. Trabalhamos juntos na formação da primeira Secretaria de Cultura de Mato Grosso do Sul. Fizemos parte do movimento do teatro amador de MS e o levamos para representação em festivais nacionais. Trabalhamos juntos no Núcleo de Teatro da Fundação de Cultura.

Tivemos juntos uma trajetória incrível de amizade. Fomos de uma época em que não se usava capacete para andar de motocicleta, e a gente fazia uso disso e saíamos de moto. O Roberto foi um grande incentivador para eu também ter moto, e sempre foi essa figura assim, muito, muito, muito acolhedora. Sempre foi um amigo para todas as horas. Deixa saudade.

Ele ficou na UCDB por 38 anos, e o encontrei várias vezes na universidade. Mais recentemente, quando eu estava à frente da FM UCDB, ele foi a primeira pessoa que chamei para compor aquele trabalho de jornalismo. Sempre muito disposto e sempre com uma única bandeira: a arte e a formação cultural de MS. Ele tinha esse papel. Foi um professor essencialmente salesiano, essencialmente Dom Bosco.

Acolhia e sorria para todos os jovens. Olhava para o jovem sempre com esse olhar: “Você pode, você vai, eu tô aqui”. Era um incentivador, e era lindo de ver aquilo. O Roberto olhava a produção artística (dos alunos), que poderia ser a mais sem nexo, e sempre falava que estava lindo, defendia a estética daquela produção. É inestimável o valor de um professor como esse.

No teatro, fomos da mesma diretoria da Federação do Teatro Amador de Mato Grosso do Sul. Fizemos parte da mesma formação do contexto político do governo do Estado na época na cultura de MS, tanto na Secretaria de Cultura quanto na Fundação de Cultura do então recém-formado estado de Mato Grosso do Sul. 

Muito imbuídos de leituras, de ansiedades, desejos, sonhos, uma das montagens mais emblemáticas foi “O Meu Guri” (1996), que era baseada na obra de Chico Buarque de Hollanda, na qual o Roberto traz esse debate do excluído, do favelado, para a cena. E ele coloca o nascimento daquela criança no palco. Achei aquilo um trabalho muito marcante na época.

E foi com o Roberto que eu fiz a minha primeira cena de nu artístico. Sempre tive muita resistência a me expressar dessa forma, e foi com ele na direção, com a preparação de ator do nosso também saudoso Jair Damasceno, que eu participei dessa cena.

Fiz a cena do garoto que nasce na favela e é cuidado e idolatrado por aquela mãe naquele enredo. Para mim sempre foi muito marcante, primeiro pela ousadia, segundo por ser tão representativo já naquela época. (Sérgio Carvalho, jornalista)

DEVO TUDO

Meu professor, meu chefe de setor, historiador, meu amigo, meu irmão. Convivi por vinte três anos com o professor Beto. O conheci no fim de 2001, quando fiz a inscrição para fazer a oficina teatral do grupo de teatro Senta que o Leão É Manso, da UCDB (criado em 1983 por Figueiredo).

Ao fim da oficina, fui selecionado para participar efetivamente do grupo. Ao longo de duas décadas estive ao lado do Betinho e aprendi muito com ele. Aliás, em relação ao meu fazer artístico, devo tudo a ele, tudo.

Tinha um coração enorme, sempre disposto a ajudar e a acolher a todos, carinhoso, atencioso e empenhado. Sempre motivado, sempre inovando, ele não parava nunca, muitas e muitas vezes meu telefone tocava no meio da madrugada e era ele compartilhando uma ideia que havia tido. 

Na UCDB, ele ia muito além do dever, muito além das obrigações contratuais, ele pensava a universidade, ele respirava a universidade, ele vivia a universidade, e a universidade tinha mais vida com ele. Das instalações no bosque, no gramado, nos corredores, sempre tinha algo do Beto, pinturas, poemas, esculturas, música, dança, coral e teatro, cada corredor da UCDB tem marcas de Roberto Figueiredo.

Mas ele foi muito além dos muros da UCDB. O jovem Beto, um menino ainda, em Três Lagoas, sua cidade natal, já se engajava nos movimentos culturais, já rabiscava seus primeiros textos e explorava o teatro como forma de expressão enquanto aluno do curso de História da UFMS. 

Foi em Três Lagoas que escreveu seu primeiro texto teatral, “William e Olavo”, que ficou guardado por mais de quarenta anos em um baú na casa de sua mãe, e que eu tive o prazer de atuar junto ao meu querido amigo Pedro Martins. Com direção dele (Roberto Figueiredo), depois de quarenta anos, montamos a peça, sucesso de plateia e de crítica. Desde a década de 1970, Beto militou a favor da cultura sul-mato-grossense.

De maneira ativa e sempre na linha de frente, participou de todos os movimentos de fomento à cultura e ao teatro em Mato Grosso do Sul, esteve envolvido nos debates que levaram à criação do Fundo de Investimentos Culturais (FIC), do Fundo Municipal de Investimentos Culturais (Fmic) e do Fomteatro (política de fomento ao teatro de Campo Grande). 

Além da causa teatral, Roberto Figueiredo atuava na proteção e na memória do patrimônio material e imaterial de Mato Grosso do Sul e de Campo Grande. Desde 2022, fazia parte do Conselho de Proteção ao Patrimônio Histórico da Capital. Beto transitou em todas as esferas culturais, nas escolas de samba, na dança, na música, no cinema, no artesanato, nas artes plásticas, se entregou por completo à cultura de MS, não tem como falar de identidade artístico-cultural sem falar de Roberto Figueiredo.

Beto foi seminarista, professor, ator, diretor, apaixonado pela vida e pela liberdade, ainda jovem teve a influência do pensamento de Leonardo Boff (teólogo, filósofo e escritor brasileiro) e da Teologia da Libertação, pauta defendida por ele durante toda a vida. Beto tinha o espírito salesiano.

Apaixonado por Dom Bosco, espelhava-se nele e em São Francisco de Assis. A frase de Dom Bosco que mais o motivava era: “Uma casa salesiana sem arte é como um corpo sem alma”. 

E ele levou de maneira imperativa essa expressão, expandindo sua interpretação para: “Uma cidade sem arte é como um corpo sem alma”. O legado é incontestável, deixou sua marca na história de CG e de MS. Evoé, Roberto Figueiredo Evoé. (Marcelo Piccolli, ator e codiretor do grupo Senta que o Leão É Manso)

INCOMPARÁVEL

A educação e a cultura de MS ficam menores sem a efetiva contribuição do professor, do historiador e do artista Roberto Figueiredo. Antenado com as questões sociopolíticas de seu tempo, Beto, por seu conhecimento e visão, sabia o que era importante no plano coletivo, e nesse aspecto estava sempre disposto a lutar por melhorias.

O teatro foi a grande paixão de sua vida. Nessa área, criou o grupo mais longevo do Estado. Pela quantidade de montagens de peças teatrais, de envolvimento de pessoas na arte teatral, de textos que escreveu e do sem-número de apresentações feitas pelo Senta que o Leão É Manso, ele deixa um incomparável legado na dramaturgia sul-mato-grossense.

Nos conhecemos no movimento teatral da década de oitenta. Ele era de Três Lagoas, veio para Campo Grande e logo começou a trabalhar na UCDB, onde criou o grupo Senta que o Leão É Manso, para o qual se dedicou integralmente. E, em paralelo a isso, o Beto foi um dos primeiros historiadores a lutar pela defesa do patrimônio histórico material e imaterial, também lutou pela criação do Conselho Estadual de Cultura, do qual participou por muitos anos, e acompanhou de perto as lutas pela valorização do teatro, por meio da Federação Sul-Mato-Grossense de Teatro Amador.

Nessas caminhadas, sempre nos encontramos empenhando nossa consciência e nossa energia nos temas aí tratados. Tudo valeu muito a pena! (Américo Calheiros, encenador teatral e ex-presidente da Fundação Municipal de Cultura, Esporte e Lazer de Campo Grande e da Fundação de Cultura de MS)

PENSADOR PRÁTICO

Roberto Figueiredo foi um dos novos pensadores que Três Lagoas produziu na década de 1970 e exportou para Campo Grande, em um tempo em que Mato Grosso do Sul ganhava vida própria. Por meio da arte e da cultura, nossa geração fazia história com a música, o teatro, as artes visuais, o cinema e a literatura. Foi no meio desse movimento todo que eu o conheci, e foi amor à primeira vista. Sempre nos acompanhamos, de perto ou de longe, e nossa parceria mais recente está no documentário “Onde Você Estava?”.

Ele sempre chamou minha atenção por ter um espírito altamente criativo e ao mesmo tempo ser organizado e prático. Esses elementos resultaram no sucesso de sua carreira profissional e construíram um legado para a nossa cultura que ainda está vivo. (Lenilde Ramos, escritora e música)

ETERNIZADO

Era um sujeito leve, educado, sorridente e também era bom de briga quando se tratava de defender a cultura. Atravessou a vida levando firmemente a bandeira da cultura sul-mato-grossense. Criou o primeiro e mais longevo grupo de teatro universitário do Estado, dedicando-se a ele incansavelmente, e foi esse grupo que montou clássicos universais, trazendo para o público daqui obras como “A Lição” e “A Cantora Careca”, de Eugène Ionesco (1909–1994), “O Burguês Fidalgo”, de Moliére, “A Megera Domada”, de Shakespeare, entre outras.

Em “A Cantora Careca”, especialmente, me diverti muito. Ele conseguiu captar o humor ácido do texto, e eu me senti feliz em ver esse autor aqui em CG. Então, havia uma ousadia do Beto em montar os clássicos e também um propósito definido de ampliar o conhecimento do público local para as grandes obras universais. Isso não é pouca coisa. Em “A Lição”, fui absorvida pela atmosfera enigmática e igualmente me senti envolvida e feliz de assistir aqui em Campo Grande, no Teatro Aracy Balabanian.

O conheci logo que voltei (do Rio de Janeiro) para Campo Grande (em 1993). Tinha acabado de fechar uma pós em Artes Cênicas e o Beto me recebeu com os braços abertos, e isso impactou positivamente na minha impressão sobre os artistas daqui. Depois disso, vivi muitos momentos diferentes e intensos com ele: festivais, mostras de teatro, debates, encontros do movimento cultural, entrevistas, jantares muito agradáveis na casa dele, pois gostava de reunir grupos.

O Beto era uma potência da cultura e uma ponte entre gerações. Ele conviveu muito com a profª. Maria da Glória Sá Rosa, a reverenciava e de algum modo é fruto também das ações dela. É uma grande perda. Sua presença fará falta em vários ambientes. Está eternizado na memória do teatro e das artes sul-mato-grossenses. Evoé! (Andréa Freire, atriz e produtora)

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