Desde quando o mundo foi o mundo das realidades e da verdade, em si? Tudo que nos chegou foi pelo processo de histórias mal engendradas, mal registradas e mal contadas. Toda a história da humanidade viajou no tempo por intermédio de narrativas, por intermédio de enunciadores que não a viveram.
São elas que formaram o cerne de todas as entranhas culturais existentes no mundo. Toda nossa vida nos foi traduzida pelos que nos precederam (lembranças são memórias atualizadas, nunca fiéis aos acontecimentos). Tudo o que deles sabemos também o foi. Tenho insistido na tese de que a verdade, enquanto categórico universal, não nos seja acessível.
Fatos são fenômenos irrecuperáveis na linha do espaço-tempo. Mesmo com o advento das novas mídias, “vê-se” o registro, mas não se pode recuperar a “realidade”, a “verdade”, tal como se deu. Isso porque nossa capacidade de percepção do mundo é ínfima, parcial, individual: o que eu percebi, o que eu vi, o que eu inferi, está absolutamente lincado a minha (in)capacidade de captar, deduzir, interpretar e enunciar o fato em si.
O que vejo, creio, percebo, está contido no campo de minha potencialidade de perceber, interpretar e enunciar. Vivemos, mesmo, mergulhados em um mundo caótico de narrativas. De enunciados e de enunciadores, a respeito da “verdade dos fatos” (inapreensíveis em si) vamos construindo narrativas possíveis dentro dos parâmetros que podemos ter. Nossas enunciações deixam nossas assinaturas, marcas e rastros de opinião, reescrevendo, diuturnamente, a história contada, do nosso e único jeito de compreendê-la e transmiti-la.
Tudo se apresenta como meras traduções. Metabolizamos o que capturamos de fora, por intermédio da filtragem do que temos por dentro. E, nesse processo de captação e representação da realidade, a carregamos com pinceladas de uma cosmovisão personalíssima que constitui nossa lente de olhar o mundo. Tal como o observado vê o observador, o mundo traduzido, por recorrência de quem o captou, apresenta-se particularíssimo diante de nós.
Depois de Einstein e da física quântica, legaram um anticartesiano novo paradigma do encontro, no qual ambos (observador e observado) se auto modificam, todas as narrativas a respeito de tudo são possíveis. Com isso, somos os que observam e os observados. Influímos e somos influenciados, modificamos o que captamos como realidade e verdade em si e as enunciamos conforme a capacidade que temos de interpretá-las e as passá-las adiante.
Somando-se ao conceito anterior, com relação a captação do mundo, a Semiótica (ciência dos signos; estudo de como lidamos com as representações) determinou que a apreensão da “realidade” se dá por intermédio de traduções sígnicas. O mundo que habitamos (e tudo que há nele) é único e individual. Vivemos a realidade que, potencialmente, podemos viver – “somos quem podemos ser” – por meio das significações que somos capazes de dar, seja com relação aos acontecimentos (aos fatos), às pessoas, à realidade, à “verdade”, à vida em si.
Enunciadores-narradores de fatos e verdades – com nossos parcos recursos de captação, interpretação e compreensão – é o que somos. Tudo arrolado em um imenso caldeirão, no qual razão e emoção nos constituem enquanto humanos pensantes e sencientes. Somos, sim, complexidades (ainda ignorantes e narcísicas), as quais atribuímos uma capacidade que não temos. Tudo é e não é, existe e não existe, dependendo do filtro que temos e usamos.
É a esse mundo de “enunciações”, “paradigmas”, “concepções” e “narrativas” que estamos todos subjugados e afetados. Dotados da arrogante prerrogativa anacrônica de que somos capazes do que não temos condição de ser, ou seja, compreender o outro e o mundo que nos asfixia por si mesmo, tal como é, tal como somos, intérpretes do que nos chega – oriundo da esfera das significações – filtrado, de antemão, por nosso próprio lastro interpretativo.
Reconhecer e conseguir vivenciar esse mundo de narrativas, talvez, seja a habilidade que precisamos reconhecer como de nossa natureza para esse momento caótico de estar no mundo, que, de toda forma, é só nosso, visto que o real não existe. A concepção que temos a respeito de tudo sempre será pessoal e intransferível. Enfim, tudo o que podemos acessar se dará, unicamente, por intermédio de traduções e de narrativas nossas e dos demais. A torre de babel não seria, assim, apenas um mito, talvez seja uma explicação.