O Rio de Janeiro, como que num ato de culpa e penitência, toma a dianteira na iniciativa de pôr fim à cerimônia do beija-mão, ao menos no âmbito do Judiciário. Depois do fim do nepotismo, decretado pelo CNJ no Judiciário e estendido pelo STF a todos os demais poderes, reputo essa a providência mais restauradora (dos princípios da moralidade, impessoalidade e racionalização) para a Justiça.
Por meio do ritual do beija-mão, os súditos de D. João VI iam prestar-lhe homenagem, demonstrar submissão e, de quebra, pedir-lhe algum favor. Registram os historiadores que a caravana de bajuladores cresceu a tal ponto que levou Sebastião Fábregas Surigué a enxergar na cerimônia um nicho de negócio. O serviço de coches e seges entre a cidade e a Quinta da Boa Vista, cuja concessão foi outorgada ao referido empresário em 1817, por Decreto de Sua Majestade, teve por objetivo proporcionar facilidade à legião de puxa-sacos e chupa-caldos, entre outros candidatos a usufruentes dos favores reais.
Quase duzentos anos se passaram desde a criação do transporte coletivo na Cidade Maravilhosa, que teve por motivação compensar a satisfação dos peregrinos, que podiam, segundo o próprio Rei, “ter a honra de beijar a minha augusta e real mão”. Agora, os Desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cansados de atender peregrinos ávidos por beijar suas mãos e implorar-lhes em tom sussurrante um voto para compor a lista tríplice do quinto constitucional, puseram fim à bicentenária cerimônia. Por meio da Resolução 001/2010, instituíram a realização de exame de admissão aos candidatos ao quinto constitucional no Tribunal.
Nada mais republicano. Afinal, os tempos mudaram. Dona Carlota Joaquina não mais desfila com lenço na cabeça, que fora rapada para se livrar dos piolhos. É hora, pois, de nos livrarmos da praga da bajulação, corolário do nepotismo.
“O notório saber jurídico é atentamente analisado durante a seleção dos candidatos, o que torna desnecessária a prova técnica” para composição da lista, afirma a Dra. Márcia Machado Melaré, secretária-geral adjunta do CFOAB, contestando a realização da prova. Entretanto, da meia-dúzia indicada pela OAB ou pelo MP, deve o Tribunal de Justiça escolher três para submeter ao Governador. Para sair do critério estritamente pessoal (do quem beija melhor), nada mais razoável do que a realização do exame para a formação da lista tríplice. Aliás, nunca entendi porque algumas instituições bradam com a exigência de concurso público para os outros, mas o abominam quando aplicável a seus integrantes.
Não tenho dúvidas de que, tal como ocorreu com a criação dos serviços de transporte coletivo, o restante do país [leia-se TJs e TRFs] seguirá o exemplo do Rio de Janeiro. Em atos administrativos, editados pelo órgão competente, os tribunais – quiçá o CNJ – hão de regulamentar o processo de seleção dos candidatos ao quinto. Afinal, de Colônia passamos a Império e deste à República. O momento impõe que os atos sejam impessoais, e que não se desperdice tempo com rituais que nada mais têm a ver com esse novo regime de governo (art. 37 da CRFB).
Por falar em critérios para composição dos tribunais, cabe-nos dar uma espiada na cerimônia do beija-mão na nova capital da Terra de Santa Cruz, mais especificamente na parte que nos interessa, o ritual para admissão como ministro do Superior Tribunal de Justiça.
Há tempo tive oportunidade de acompanhar um desembargador numa de suas peregrinações para alcançar a graça de entrar na lista tríplice que o STJ elabora e remete ao presidente da República, a fim de que este nomeie o ungido.
Interessante. Nos idos de 1988, quando emocionado li pela primeira vez o texto constitucional, supus que a escolha do “brasileiro de notório saber jurídico e reputação ilibada” para compor o STJ seria feita por critério objetivo, única forma possível de harmonizar a escolha preconizada no art.104 da CRFB com os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, também da Constituição). Angelical ingenuidade, ou falta de conhecimentos de Direito Constitucional.
Bem, a peregrinação que tive o desprazer de acompanhar deu-se numa solenidade de posse (também de ministro do STJ), mais especificamente antes dos discursos, durante o coquetel e no aeroporto, onde encontramos alguns ministros de partida para a terra natal. O que achei curioso, para não dizer humilhante e vergonhoso, é que esse meu amigo desembargador – sim, o candidato a ungido – a todos, inúmeras vezes, se dirigia com a mesma ladainha, ou seja, pedia voto, apoio ou empenho (dependendo da função ou qualidade do abordado) para que seu nome fosse incluído na tal lista. A um ministro, por seis vezes, incluindo uma no banheiro, esse meu amigo fez o mesmo pedido, a guisa de indagação: “posso contar com o seu voto?” À mulher dos ministros, o pedido era para que, no recôndito da alcova, sussurrasse o seu nome, a título de intercessão. Às sogras também se pedia apoio, recomendando, subliminarmente, o momento e forma mais adequados para abordar o ministro. Sequer os motoristas eram poupados, aos quais se pedia que refrescasse a memória do ministro no dia da sessão.
Foi suado, cansativo, mas valeu – disse o meu amigo ao ver seu nome na lista. Valeu? Sim, tudo vale a pena quando a alma é pequena, diria Fernando Pessoa, se tivesse presenciado os enfadonhos rapapés. Bem, nome na lista, é hora de obter a aprovação do Senado e em seguida a nomeação do presidente da República. Aí, meus caros, é o vale tudo. Do vereador ao presidente, incluindo os cabos eleitorais; do amigo ao parente, passando pelos empresários financiadores de campanhas políticas, a todos se pede, pede e volta a pedir.
Mas como é dando que se recebe, decerto que também se oferece. E disso resulta uma amnésia no candidato, que, no jogo de incerteza e expectativa, esquece-se do principal postulado da magistratura: o juiz não pede favor e não aceita dádiva, ainda que em forma de intervenção a seu favor. De qualquer forma, a bem da verdade, com asco, desta empreitada fiquei de fora e por isso não pude testemunhar a mesquinhez da alma.
Qualquer mortal despido de formação jurídica percebe que o processo de escolha e nomeação dos ministros do STJ ultraja os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Ultraja o princípio da legalidade, porque até analfabetos funcionais conseguem ler o que está escrito no art. 37 da CRFB; da impessoalidade, porque a escolha do futuro ministro é feita com base no exclusivo desempenho na cerimônia do beija-mão; da moralidade, porque ofende os mais comezinhos tratados sobre a conduta dos magistrados; da publicidade, porque o “dando que se recebe” é feito às escondidas, sem qualquer procedimento que permita o controle de outros potenciais interessados e da comunidade em geral; e, por fim, o princípio da eficiência, porque o ritual de mesuras que antecede à nomeação em nada contribui para a efetivação dos valores republicanos, ao contrário, rouba o tempo de quem aborda e de quem é abordado.
Não nos esqueçamos também de um princípio que integra a cláusula do devido processo legal. Refiro-me ao princípio da imparcialidade, tão caro ao Estado Democrático de Direito. Nós, habitantes deste território, no qual se assenta um povo com sentimento de nação, pelo qual foi constituído um governo politicamente organizado, temos direito a juízes visivelmente e visceralmente imparciais. E não basta ser imparcial. Tal como a mulher de César, é indispensável que como tal também se apresente, mostre-se aos olhos do povo que nos paga e justificadamente nos cobra. Dito isso, cabe uma pergunta: parece imparcial o ministro que para alcançar o cargo a todos pede, implora, rebaixa-se e abaixa-se? Não vão nessas palavras, evidentemente, qualquer desconfiança contra a honorabilidade dos respeitados e respeitáveis ministros do STJ. Que Deus me livre de tamanha blasfêmia. Mas em alto e bom tom, na qualidade de cidadão brasileiro – a quem ainda se reconhece a sagrada liberdade de expressão – eu digo: urge que mudemos a sistemática de escolha desses ministros, ainda que o atual sistema a muitos possa interessar.
Não se compreende por que o CNJ, tão expedito – para gáudio nosso – na tomada de providências visando o controle da atuação administrativa e financeira da Justiça de primeiro e segundo graus, mostre-se tão tolerante com esse espúrio processo de escolha, que já causou indignação até a integrantes do próprio STJ. Em outras circunstâncias, redundante seria transcrever uma das missões desse augusto Conselho:
(...) zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União (CRFB, art. 104).
Medida salutar foi adotada pelo CNJ ao editar a Resolução n. 106/2010, que dispõe sobre critérios objetivos para a aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de segundo grau. Com o estabelecimento de critérios objetivos para a promoção de juízes, o CNJ teve a virtude de extirpar muitas ervas daninhas com uma enxadada só. Com escolha por meio de dados constantes da ficha funcional dos candidatos, evitou-se a cizânia gerada pela competição desmedida, melhorou-se a transparência das promoções, evitou-se a desonra e contribuiu-se para a produtividade. Agora, juiz não mais precisa ir ao tribunal para beijar a mão do desembargador; o desembargador não precisa parar o seu serviço para dar a mão ao beijo do juiz.
Mudando o que deve ser mudado, também os critérios para investidura no cargo de ministro do STJ deveriam ser objetivos, fixados em resolução do CNJ. A informatização dos meios de comunicação e, sobretudo, o processo virtual, tão relegados no mencionado sistema de escolha, poderiam ser muito úteis ao acesso do STJ à formação acadêmica, obras e artigos publicados, peças processuais, atuação funcional, entre outros dados necessários à aferição do saber jurídico e da reputação ilibada do postulante. Há que se lembrar aos conselheiros que o CNJ tem atribuição também para regulamentar atos do STJ. Não há, pois, razão para constrangimento.
A ausência de critérios para escolha dos ministros do STJ, além de comprometer a moralidade e a imparcialidade, afora outros princípios, tem revelado uma face ainda mais perversa para a magistratura de carreira, para a função judicante e para a integridade do texto constitucional.
Segundo o disposto no art. 104 da CRFB, o STJ é composto de, no mínimo, trinta e três ministros, sendo vinte e dois escolhidos dentre magistrados de carreira e onze dentre advogados e membros do Ministério Público.
A justificativa para esse terço de profissionais estranhos aos quadros da magistratura – que nos tribunais de segundo grau se restringe a um quinto ou 20% – seria a oxigenação. Essa eclética constituição teve por objetivo viabilizar que as decisões dos tribunais pudessem contemplar correntes de pensamento diversas da ostentada pela magistratura de carreira. É o que se convencionou denominar oxigenação dos tribunais, como se faltasse oxigênio a um órgão jurisdicional composto exclusivamente de magistrados.
Entretanto, com o passar do tempo – pouco mais de 20 anos – o STJ inalou tanto oxigênio que corre grave risco de oxidação e, por conseguinte, de comprometimento da sua missão constitucional.
Ocorre que os advogados e membros do Ministério Público, chegando aos TJs e TRFs, num passe de mágica transformam-se em desembargadores e, nessa qualidade, sem qualquer requisito temporal, tornam-se aptos a disputarem uma vaga no STJ. Temos assim dois pesos e duas medidas. Um advogado, por exemplo, para que possa concorrer a uma vaga nos tribunais de segundo grau deve contar com pelos menos dez anos de efetiva atividade profissional. Entretanto, para integrar o STJ como “magistrado”, basta que tenha tomado posse e entrado em exercício no tribunal de segundo grau, em outras palavras, que tenha, quando muito, desempenhado por algumas horas as funções do cargo de desembargador.
Interessante. Para oxigenar os tribunais de segundo grau, é indispensável dez anos de atividade. Entretanto, para “oxidar” o STJ – essa é a visão pejorativa que se formou da magistratura de carreira como forma de justificar o ingresso no Judiciário sem concurso público – basta algumas horas de atividade judicante, o que, às vezes, não é bastante sequer para subscrever um despacho.
A toda evidência, a última parte do inciso II do parágrafo único do art. 104 da CRFB deve-se aplicar também aos magistrados. Ou seja, tal como se exige que o advogado conte com um mínimo de dez anos de atividade para ascender a um tribunal de segundo grau em vaga decorrente do quinto, indispensável é que para concorrer a uma vaga no STJ, na classe dos magistrados, conte o advogado que adquiriu o status de desembargador com igual tempo de atividade judicante. É essa, a meu ver, a única forma razoável de se interpretar o texto constitucional em conformidade com a ratio que norteou o legislador constituinte. Permitir que um profissional do direito, sem qualquer prática como julgador, pelo simples fato de ter adquirido o status de desembargador, como tal venha a ocupar uma vaga no STJ despreza o mais elementar bom senso.
Infelizmente essa é a realidade dos fatos, proporcionada pela prática do beija-mão, que vicejou diante do receio do CNJ em regulamentar atos que digam respeito aos tribunais superiores, e do silêncio dolorido da AMB, que tem se valido da esdrúxula prática para promover a ministros ex-dirigentes da entidade.
Sem concurso público e sem qualquer critério objetivo de apuração do notório saber jurídico, com o simples manejo da cerimônia colonial, chega-se aos tribunais de segundo grau. Alcançado esse patamar, o novel e jejuno “magistrado”, seguindo o mesmo ritual, vai ocupar uma vaga no STJ que o constituinte quis reservar ao desembargador.
Resumo da ópera: com a conivência de todos, inclusive de nossa entidade confederativa, dois terços do Tribunal da Cidadania é composto por advogados e um terço por membros do MP e desembargadores. É a mais absoluta subversão da norma e da lógica constitucionais.
Desesperançados, não mais espera a magistratura brasileira que a sua confederação se esforce para restaurar a ordem constitucional. Cabe então à Anamages apresentar sugestão de emenda constitucional, para que na escolha dos ministros do STJ seja observada a classe de origem. Sem prejuízo dessa providência, urge que o CNJ estabeleça os critérios objetivos para a apuração do dito notório saber jurídico. Em se tratando de vaga destinada a desembargador, um dos critérios a ser observado, por óbvio, deve ser o tempo mínimo de dez anos no exercício da judicatura. Nada disso, obviamente, nos impedirá de bater às portas do STF, visando conferir ao art. 104 da CRFB uma interpretação em conformidade com os princípios constitucionais, anulando, se for o caso, os atos de investidura editados em afronta à normatividade da Constituição.
* Elpídio Donizetti ,* desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages), mestre em Direito Processual Civil pela PUC Minas, professor de Direito Processual Civil do curso Aprobatu