Digo que o cinema é, em sua essência, uma arte, porque é a soma de todas as artes. Georges Méliès Que fazer numa tarde de chuva que cobre a cidade de uma névoa cinzenta a não ser fechar- se numa sala de cinema e deixar-se invadir pela atmosfera onírica de episódios que tomam conta dos vãos de nosso inconsciente, numa espécie de sofisticação visceral, em que todos os truques são possíveis, conforme nos afirma Montaigne? Foi assim que atravessei o corredor sombrio do cinema para encontro com Pedro Almodóvar, cuja obra faz parte do patrimônio cultural, não apenas da Espanha mas de todos nós que cultivamos perdidas paixões, sonhos malogrados, no contexto fílmico em que as artes coexistem num delírio de alucinações, reinventadas pelo talento do autor. Seus filmes, que nos presenteiam com a estética das paixões desesperadas, costumam ter princípio meio e fim, não necessariamente na mesma ordem, como costumava dizer Jean Luc Godard, famoso pela quebra de estruturas em algumas de suas caóticas realizações. Assim acontece em “Abraços partidos”, que se constrói em dois planos: o presente, representado pela cegueira de um diretor, cuja tragédia acompanhamos através do fio das recordações, que recompõem a lógica de uma paixão por uma atriz, representada por Penélope Cruz, musa do diretor. No auge da beleza que nos reporta às grandes divas do passado, como: Hedy Lamar, Ava Gardner e Sophia Loren, seus olhos, cabelos, boca invadem a tela, destroem as reservas de resistência do personagem e confundem a cabeça do espectador. Sala de cinema praticamente vazia. Poucas pessoas dispostas a pensar, a acompanhar um drama em que o diretor, seguindo a lição de Billy Wilder, agarra o espectador pelo pescoço e não o solta em momento algum. No mesmo cinema, filas imensas de crianças, adolescentes e até adultos aguardam a terceira dimensão dos efeitos visuais de “Avatar”. A multidão foge de qualquer esforço mental, quer apenas encher os olhos de cores, sons, sabores, numa fuga a problemas de qualquer ordem. Então, num jogo de espelhos me vejo criança, no Cine Alhambra, por trás de óculos de celulóide, tremendo de medo de ser atacada pelos objetos projetados na terceira dimensão da tela. Em minha inocência acreditava na força de mitos como Tarzan, Drácula e me identificava com a pureza de Carlitos, acreditava na honestidade dos policiais, na coragem com que John Wayne defendia os índios. Lembro-me de meu filho pequeno que acordava de noite assustado com o tropel dos soldados, que perseguiam os comunistas na guerra espanhola. A geração de hoje, dissensibilizada pelos avanços da tecnologia, assiste passiva ao desfile de animais monstruosos, sorri, quando o sangue jorra rubro da boca dos vampiros. De modo geral são crianças viciadas nos jogos dos computadores, e, por isso, querem produções diferentes. O importante é que os filmes gerem emoções, façam passar o tempo. Os filmes de mocinho, os seriados que faziam as delícias de outrora não fazem mais parte das preferências de nossos filhos inda menores. King Kong, que nos fazia estremecer, segurando a mocinha do alto do Empire State, é uma cena que causaria tédio ou riso. O surrealismo dos desenhos animados, a inocência dos gritos de Tarzan deram lugar ao horror dos filmes góticos. A mitificação do banal, a celebração do vazio, grandes componentes do repertório de nossos dias, tomou conta da vida de pequenos. e grandes. “Pensar incomoda como um pé dormente”, dizia Fernando Pessoa. Pergunto, então: Para onde nos levará essa banalização do real?