Juridicamente, o estado de Mato Grosso do Sul encerra o ano de 2020 com muito mais segurança financeira do que nos anos de outrora. E esta situação mais confortável deve-se ao trabalho da Procuradoria-Geral do Estado, que neste ano, mesmo com os desafios da pandemia, obteve vitórias importantes, como a garantia de tributar e receber os recursos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o gás natural importado da Bolívia, além de caminhar rumo a uma fila próxima de zero pessoas com precatórios a receber.
A procuradora-geral do Estado, Fabíola Marquetti Sanches Rahim faz um balanço deste ano, em que houve vitórias, mas também desafios – alguns já superados e outros que ainda representarão uma nova batalha judicial no Supremo Tribunal Federal (STF).
Correio do Estado: Depois de mais de uma década de disputa com outros estados, Mato Grosso do Sul finalmente conquistou o direito de tributar a importação do gás natural, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Conte-nos sobre o trabalho da Procuradoria-Geral do Estado neste período.
Fabíola Marquetti: Foram 14 anos de liminar para Mato Grosso do Sul, e essa ação do gás repetiu um precedente do ministro [Edson] Fachin e do ministro Gilmar Mendes, que já tinham entendido que o Estado é quem tinha o direito do cobrar ICMS sobre a importação do gás natural.
O ministro Gilmar foi o nosso relator, que reconheceu o direito à tributação do ICMS importação, que é um ICMS diferenciado, da importação do local onde está situado o estabelecimento comercial importador. Essa foi a nossa tese desde todo sempre. Quem faz a importação do gás natural da Bolívia é uma filial da Petrobras situada em Corumbá. O gás não somente entra em Corumbá, como alegavam outros estados, mas é comprado por um estabelecimento localizado em Corumbá. Esse entendimento foi confirmado pelo STF, e agora a jurisprudência está consolidada neste sentido.
Correio: E a decisão também deu uma segurança financeira para o Estado...
Com certeza, porque são R$ 1,2 bilhão por ano de arrecadação. É um valor muito significativo. O governador, sempre que nós conversávamos sobre esse assunto, ele sempre costumava dizer que se esta receita fosse cortada, o Estado perderia sua capacidade de investimento, pois trata-se de 13% da receita.
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E como o novo marco regulatório do gás, que deve liberar o mercado no Brasil, poderá influenciar sobre os efeitos da decisão do STF?
Na verdade o mercado já está liberado. O que não temos hoje são outras empresas autorizadas pela Agência Nacional de Petróleo [ANP] a fazer essa importação como faz a Petrobras. Porque trata-se de uma atividade toda regulada pela ANP. A empresa que fizer a importação tem de passar pelos regulamentos e obter a aprovação e a autorização, e nenhuma outra empresa está autorizada a fazer essa importação a não ser a Petrobras.
Mas já que há a regulação que permite que outras empresas sem ser a Petrobras possam importar, então isso já é uma realidade legal. Ela não é uma realidade fática porque ainda não existe nenhuma empresa com autorização para comprar. Isso significa que futuramente essa receita de importação do gás poderá ir para outro estado?
Se a empresa tiver o estabelecimento comercial dela situado, por exemplo, em São Paulo, vai pra lá, e isso ocorre porque o duto da TBG [Transportadora do Gasoduto Bolívia-Brasil], por si só, não assegura a arrecadação; tem de ter o status comercial. Por isso, se outras empresas se habilitarem para a importação e não estiverem situadas em nosso Estado, a arrecadação ficará para a unidade da federação onde elas estão.
Vamos agora falar de um grande desafio deste ano, a pandemia de Covid-19. Primeiramente, internamente, como foi para a PGE lidar com o trabalho remoto, em casa?
Costumo dizer que não sofremos nenhum grande abalo com o home office obrigatório. Quando houve o decreto do governador estabelecendo o trabalho remoto, toda nossa estrutura já estava preparada para essa realidade. Isso ocorreu porque em 2019 comecei uma mudança na forma de atuação da PGE. Nós antes trabalhávamos divididos por territórios, distribuídos por comarcas no interior e em Campo Grande, por especialização em área de atuação. Em setembro de 2019 elaborei um projeto para que toda a PGE passasse a trabalhar por especialização e não mais por território. Quando veio a pandemia, não tivemos impacto algum, porque já estávamos trabalhando a distância em vários setores.
O que houve foi um ganho de produtividade, porque algumas coisas que já prevíamos e que não dependiam de nossa regulamentação, como as audiências virtuais, foram instituídas pelo Poder Judiciário. Depois disso, tivemos uma aceleração na resolução das demandas.
E como foi este ganho de produtividade, houve economia de recursos?
Financeiramente ainda não consigo te passar os números, mas, por exemplo, em setembro deste ano a PGE produziu 17,7 mil peças processuais.
Em 2019, no mesmo período, foram 11.476.
E no que diz respeito à atuação da PGE em toda a sociedade, quais foram os desafios impostos pela pandemia de Covid-19?
A parte mais sensível que nos demandou neste ano foi a de auxílio à gestão. A pandemia exigiu muita rapidez na administração pública, que tem todo um regramento. Para tomar decisões rápidas e diferentes, os gestores usaram muito mais os serviços da Procuradoria-Geral do Estado. A gente esteve em todo o momento dando suporte legal para eles.
Um dos exemplos foi a elaboração em tempo recorde dos manuais de aquisição, conforme a nova legislação, o que agilizou as compras. Criamos minutas digitais para a compra de materiais para o tratamento da Covid-19. Tem sido um trabalho muito intenso de absorver a nova legislação e orientar os gestores.
Por termos procuradores em todas as secretarias, isso também deu muita agilidade ao trabalho. Neste ano, produzimos mais de 40 decretos para o governador Reinaldo Azambuja somente em relação à pandemia.
Nós também integramos o programa Prosseguir; tenho cadeira lá e participo das votações. Avaliamos as justificativas apresentadas pelos municípios. É um acompanhamento semanal.
A pandemia também impôs desafios em outras áreas além da saúde?
Sim, tivemos uma atuação muito importante, no mês de março, quando entramos com uma ação no Supremo Tribunal Federal para assegurar a suspensão do pagamento da dívida com a União. Conseguimos a liminar e o Estado deixou de pagar R$ 30 milhões por mês da dívida, recurso que foi todo destinado à saúde. Também participamos assessorando o governador em toda a negociação do socorro financeiro aos estados pela União, que resultou na Lei Complementar 173 e que resultou em acordo que pôs fim à ação no Supremo.
Outra frente de trabalho da PGE nos últimos anos tem sido no pagamento de precatórios. Conte-nos sobre estes acordos.
São duas frentes principais. A primeira delas, são as parcerias com o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e demais tribunais [Justiça Federal e Justiça do Trabalho].
A segunda parte é a inovação destes acordos: todos os editais da procuradoria foram criados a partir de consenso com estes tribunais, e eles são diferenciados em relação aos editais de outros estados, porque nossos descontos ocorrem de forma progressiva, e isso é um atrativo muito grande.
Primeiramente nós focamos nos precatórios menores, porque havia um número muito grande de pessoas com valores pequenos a receber. Fizemos editais focados neste público e obtivemos um resultado excelente, com o pagamento por meio de requisições de pequeno valor (até R$ 15 mil). Isso limpou a pauta dos pequenos precatórios.
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O pagamento destes precatórios de maior valor ajudou a dar seguimento aos de maior monta?
Sim, depois de praticamente limparmos essa pauta, fizemos acordos focados em precatórios de valor entre R$ 15 mil e R$ 150 mil e tivemos um resultado extraordinário. A gente superou muito as metas estabelecidas. E agora o nosso novo edital, que se estende ao longo de 2021, que a gente já publicou, ele já vai pagar os precatórios com vencimentos próximos.
Agora, a gradatividade de descontos é de acordo com o ano do precatório e o foco está em pagar os precatórios grandes. Por exemplo, quem tem um precatório para receber dos anos de 2012 ou 2013, o desconto é só de 5%, e assim vai: 2014, 10%; 2015, 15%. E quem é 2020 é 40%. São R$ 40 milhões economizados [neste edital].
E na outra ponta, como tem sido a reação?
O feedback que tenho dos advogados é muito bom. Em todo momento fiz questão de compartilhar a realização destes acordos e tive o apoio da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]. A agilidade, por termos firmado os acordos e realizado dentro do prazo, dentro dos primeiros acordos, nos deu credibilidade e fez com que os novos acordos tivessem muito mais adesões. E os clientes destes advogados ficaram extremamente satisfeitos, muito mesmo. Foi muito positivo em relação ao cumprimento do prazo do acordo.
Outra coisa a se ressaltar é que nos pequenos acordos financeiros, os recursos financeiros ficaram no Estado. Houve uma injeção de recursos na economia. Um grupo muito atingido pelos acordos foram os servidores públicos, pois um grande número dos precatórios de pequeno valor era de servidores públicos. Isso foi realmente fantástico. Essas pessoas tiveram acesso a um crédito em um momento difícil, foi em 2019 e em 2020. Em 2019 a crise era muito grande, e 2020 foi um ano da pandemia. Então a gente injetou dinheiro no momento em que as pessoas estavam precisando.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, recentemente ingressou com ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra emenda à Constituição de Mato Grosso do Sul que estabelece que o cargo que você ocupa hoje em dia seja ocupado exclusivamente por procuradores de carreira. Como esta ação interfere na função da procuradoria: é uma função de Estado ou de governo?
Sou vice-presidente do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais e eu levei o tema para discussão, e a conclusão é de que a advocacia pública é uma carreira de Estado, e assim como as outras carreiras de Estado – magistratura, Ministério Público –, nós somos divididos por entes integrantes dela. Por isso o conselho e nós aqui em Mato Grosso do Sul divergimos radicalmente da ADI, porque para nós ela é um retrocesso. Não há na verdade uma limitação à discricionariedade do governador do Estado em indicar o seu procurador-geral do Estado. Que é o que o procurador-geral da República, com todo respeito, defende. Ele diz que nossa previsão na Constituição haveria uma limitação à discricionariedade do governador do Estado em indicar o seu procurador-geral do Estado. O que nós defendemos, porém, não é isso. A PGE integra uma carreira de Estado, não é uma secretaria que tem um status mais ligado à gestão.
A advocacia pública tem status constitucional, equiparação com demais carreiras jurídicas. Então ela também há de ser representada por um integrante seu.
E o que isso é? Isso na verdade é também fruto de uma iniciativa do próprio chefe do Executivo à época, que está publicando a autonomia estadual. Os estados todos têm autonomia legislativa dentro de sua competência. Essa emenda constitucional questionada pelo PGR foi o exercício da autonomia legislativa do estado de Mato Grosso do Sul.
Hoje, todas as PGEs, sem exceção, estão presididas por procuradores de carreira.
A advocacia pública também vem mudando o foco de sua atuação, com ações sobre matérias de grande alcance. Conte-nos sobre essa mudança.
O Colégio Nacional de Procuradores-Gerais estabeleceu essa organização. Os estados hoje atuam dentro dos interesses comuns. Não atuam mais isoladamente. Essa estratégia de atuação coletiva veio, ao longo dos anos, sendo criada. Isso hoje já está estabelecido. Hoje os estados litigam nos interesses em comum e de maneira coordenada. Isso está bem organizado, e nossa meta para 2021 é justamente o fortalecimento do Colégio Nacional, em termos de estruturação, com uma sede física em Brasília, inclusive. É necessário fazer essa defesa, principalmente nas questões tributárias. E o assunto no momento é essa reforma tributária.
E neste início de 2021, teremos concurso para a PGE?
O governador autorizou o concurso, a realização de um concurso público para cadastro de reserva. No primeiro semestre já vamos publicar o edital deste concurso. A PGE tem muitos procuradores já em abono de permanência. O cadastro é extremamente importante porque visa suprir uma vacância. A demanda também aumentou bastante depois que assumimos em junho todas as autarquias. É um volume de processos sem nenhum novo procurador do Estado. Estamos atuando estrategicamente para conseguir atender a todos estes processos.