Luiz Carlos Merten (AE)
Em 1974, Sam Peckinpah estava num momento singular de sua carreira. Acostumado a ter problemas com produtores – a maioria de seus filmes foi retalhada, remontada –, ele gozara de momentos de rara tranquilidade nos dois trabalhos que fez com o astro Steve McQueen, “Dez segundos de perigo” e “Os implacáveis”. Seguiu-se o pesadelo de “Pat Garret” e “Billy the Kid”, quando de novo o estúdio não o deixou em paz. Peckinpah fez então o mais derrisório e selvagem de seus filmes. “Tragam-me a cabeça de Alfredo García” não tem astros nem estrelas e se desenrola num clima opressivo e sórdido. O personagem de Warren Oates é o pai de todos os derrotados. O filme é tão desconcertante que até hoje muitos críticos se perguntam o que, exatamente, Peckinpah estava querendo dizer com ele.
“Tragam-me a cabeça de Alfredo García” não é dos filmes mais populares do autor. Até hoje, passa pouco na TV. Estava inédito em DVD – a Lume, agora, o resgata de seu silêncio. O título é berrado logo na abertura, quando um chefão mexicano sabe do romance clandestino da filha e exige que lhe tragam a cabeça de Alfredo García. Warren Oates faz o pianista que cumpre a tarefa. Ele a executa logo e passa o restante do filme em fuga, perseguido por todo tipo de psicopatas, sempre carregando a cabeça que, a esta altura, já está apodrecendo. O cineasta poupa o espectador do odor fétido que ela exala, mas a metáfora é clara. A podridão é do mundo.
Warren Oates nunca foi um astro, mas era certamente um ator cultuado nos anos 1960 e 70, quando integrou o elenco de quase todos os westerns de Peckinpah e também participou de filmes de outros autores importantes, quase sempre indies, na era de ouro da produção alternativa a Hollywood. Era durão e tinha aquela qualidade taciturna e silenciosa dos grandes, mas certamente não era o que se chama de chamariz de público. Ao escolhê-lo como protagonista de “Tragam-me a cabeça de Alfredo García”, Peckinpah estava querendo mandar um recado – aos produtores, ao público. Sem um astro com uma personalidade definida aos olhos da plateia, ele se liberava para ir, mais do que nunca, ao limite. Há um banho permanente de sangue em Alfredo García. E o autor nem se preocupa em embalá-lo naqueles movimentos em câmera lenta que o tornaram famoso. Alfredo García é cru, jogo duro.
Toda a construção dramática gira em torno de temas como poder e dinheiro. Em seus filmes anteriores, especialmente nos westerns, contando a saga dos pistoleiros do entardecer, Peckinpah mostrou a transformação do mundo e a derrocada dos mitos, mas sempre de um jeito que determinados valores – a honra, a mística do grupo – ajudavam a preservar alguma coisa boa, ou digna, de suas criaturas. Em Alfredo García, não existe nada disso. Os caçadores de Warren Oates são todos piores que eles, um bando de celerados que parecem formar uma súmula das fraquezas humanas. Existe a mulher, e Isela Vega imprime momentos de ternura feminina à dureza dos homens, mas ela própria tem de se fazer uma fortaleza para sobreviver neste universo.
As cenas entre Gig Young e Robert Weeber sugerem um vínculo homossexual entre ambos e a metralhadora que dispara para a câmera era o máximo da provocação na época. Muitos críticos chamam Peckinpah, levianamente, de poeta da violência. Neto de um cacique, criado no Oeste ouvindo histórias de índios e pistoleiros, Peckinpah fez da violência o tema permanente do seu cinema. Como Arthur Penn, outro grande dos anos 1960, o assunto o interessa como espelho da ‘América’ – o país só resolve seus conflitos por meio da pauleira. Só que Peckinpah, como Penn, não faz a apologia da violência. Ele a critica. O mundo está sempre em transformação em seu cinema, o personagem é via de regra desajustado e solitário. Alfredo García, o filme, tem a cara de Peckinpah.