O vazio sentido por Laura depois que os filhos, crescidos e encaminhados, saíram de casa foi preenchido por álcool.
Toda tarde, após deixar o consultório onde trabalha como médica, ela brindava – sem alegria – à própria solidão. O uísque do marido foi encarado como fonte daquilo que acreditava ter perdido com a menopausa. Bebeu até a última gota de incontáveis garrafas. Jamais encontrou o que procurava.
O DNA do alcoolismo
A médica tornou-se paciente por dependência química aos 56 anos de idade. No ano passado, 1.483 mulheres com mais de 50 anos foram internadas em hospitais de todo País por uso abusivo de álcool, um aumento de 7,2% em relação a 2009, mostra levantamento feito pelo Delas nos dados do Ministério da Saúde. Entre os homens de mesma faixa etária houve decréscimo de 2% neste tipo de internações.
Apesar dos registros oficiais mostrarem que o encontro com a bebida na meia-idade é crescente, este tipo de alcoolismo feminino tardio permanece invisível para a sociedade.
“Estas mulheres bebem dentro de casa, longe dos olhos dos filhos, amigos e companheiros”, afirma Silvia Brasiliano, psicóloga do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (Promud), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).
Na avaliação de Patrícia Brunfentrinker Hochgraf, médica coordenadora do Promud, este aumento estatístico indica que, aos poucos, o problema começa a aparecer debaixo do tapete. “Procurar ajuda nesta idade é um passo mais recente”, afirma
“Além de todos os danos resultantes da dependência do álcool, as mais maduras convivem com o estigma de que é feio mulher mais velha beber. As jovenzinhas até são perdoadas. Já elas precisam se esconder.”
Preferência de risco
Este uso envergonhado de bebida alcoólica pode até evitar os “porres” em praça pública mas não poupa as usuárias dos riscos. Uma das pacientes em tratamento no Hospital das Clínicas de São Paulo, de 60 anos, sanava a vontade de beber com álcool de limpeza. Tudo para evitar o julgamento do caixa do mercado que ficava em sua vizinhança, onde todo dia ela comprava o produto.
“Prefiro que ele pense que sou maníaca por limpeza do que uma bêbada que não vive sem vinho”, confessou durante a sessão de terapia que faz parte do tratamento de recuperação.
Álcool ou remédio?
Transformar o álcool higiênico em “drinque” é apenas uma das adaptações. De acordo com os especialistas, a maior parte das pacientes com mais de 45 anos utiliza as bebidas alcoólicas como remédio para a tristeza profunda que surge no encalço das mudanças vindas com a idade, como partida dos filhos, separações do marido ou aposentadoria.
Um levantamento com as pacientes do Promud identificou que 52% delas tinham depressão associada ao alcoolismo. “Elas se ‘automedicam’ com cerveja, cachaça, uísque ou vodca”, compara Ana Beatriz Pedriali Guimarães, psicóloga da Universidade Federal do Paraná, que estudou em seu doutorado as características do núcleo familiar das mulheres alcoolistas com mais de 45 anos.
Apesar de todas as 30 mulheres pesquisadas por Ana Beatriz terem citado problemas contemporâneos de relacionamento com filhos ou companheiros, uma figura do passado apareceu de forma unânime no discurso das pacientes: a mãe.
“Todas elas relataram relações conflituosas com a figura materna desde a época em que eram crianças. Em geral, foram filhas consideradas as princesinhas dos pais, disputavam espaço com as mães que, não raro, também eram alcoolistas”, informa a psicóloga.
O alcoolismo não é o único hábito ruim passado de mãe para filha detectado no estudo. O comportamento violento também aparece na árvore genealógica. As mulheres alcoolistas pesquisadas por Ana Beatriz conviviam com a violência de forma íntima. Tanto no papel de vítimas quanto no de agressoras.
Este álcool como combustível da agressão familiar aparece no pano de fundo de mudanças consistentes no perfil da violência em São Paulo. Os dados preliminares de 549 homicídios esclarecidos e estudados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), divulgados pela Agência Estado, indicam que os assassinatos dentro de casa passaram de 10% do total em 1999 para 20% em 2010. No ano passado, as mulheres eram 7% das vítimas. Hoje já somam 16%.
Estresse e espelho
Na fatura do crescimento do alcoolismo entre as mulheres de meia idade entra ainda o estresse trazido pelas jornadas exaustivas de trabalho. Os dados colhidos pela reportagem no site do Ministério da Previdência Social mostram que, todo dia, quatro mulheres precisam se afastar do serviço para tratar a dependência química de álcool e outras drogas (em 2010 foram 1.498 licenças trabalhistas).
“O fato positivo neste cenário é que começa um movimento, ainda embrionário, de mudança de postura empresarial”, diz Ana Cristina Fulini, coordenadora terapêutica da Clínica Maia, que atua no acolhimento de dependentes químicas.
“Alguns poucos departamentos de recursos humanos deixaram de considerar o alcoolismo um problema moral e, sim, uma questão médica. Em nossa clínica, já temos executivas encaminhadas pelo RH de seus trabalhos, um avanço.”
A pressão enfrentada por estas mulheres não fica centrada no campo profissional e é afetada também pelo espelho. “Independentemente da faixa etária, muitas dizem que bebem para driblar a fome e, com isso, emagrecer (comportamento chamado de drunkorexia)”, completa a terapeuta Ana Cristina.
Um trabalho conduzido pela psicóloga do Promud Silvia Brasiliano identificou que das 80 dependentes de álcool investigadas, 59% tinham um transtorno alimentar associado. Nos serviços especializados na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) foi constatado um aumento importante da anorexia na maturidade.
Três vezes vazio
A médica Laura, citada no início da reportagem, resume que todos estes componentes por de trás do alcoolismo na meia idade compõem o vazio que é visto, pela maioria, como gatilho da dependência tardia.
O vazio também está na sala de espera das unidades que tratam estas mulheres, já que maridos e filhos não costumam acompanhá-las no tratamento. Mais uma vez o vazio aparece dentro dos hospitais especializados, já que elas resistem ao atendimento.
“Abrimos uma unidade feminina e elas (pacientes) não vêm. São resistentes mesmo. Metade dos leitos está vazia. Na unidade masculina, ao contrário, são filas de espera”, lamenta a psiquiatra Alessadra Diehl, coordenadora do serviço feminino da Unifesp em São Bernardo do Campo, aberto há um mês.
Laura está em recuperação há 15 dias. O vazio primeiro foi preenchido por vergonha. Agora, o momento é de resgate. “Tenho saudades de ser mais ativa e produzir mais. Inclusive a depressão me levou a deixar de trabalhar por prazer. Hoje nem gosto mais de trabalhar, vou por obrigação”. A médica ainda está vazia. Mas agora, acredita, está pronta para se reencontrar.