Alguns flashs de lembranças isoladas, fatos às vezes nem tão importantes, mas que ficam na memória por algum motivo. Tudo por volta dos quatro ou cinco anos de idade. Antes disso, nada.
"Desconhecemos e esquecemos muitos aspectos da nossa vida. É muito provável que você saiba pouco sobre si mesmo", diz Fani Hisgail, psicanalista.
E é justo a infância, tão saudosa e cantada pelos poetas, a época mais esquecida.
Ironia biológica? Os especialistas chamam de amnésia infantil, e não tem nada a ver com lapsos de memória, mas com os quatro primeiros anos de vida que parecem ter sido apagados com borracha.
"Sim, pode-se dizer que perdemos parte da nossa infância", afirma à Folha Carole Peterson, pesquisadora da Memorial University of Newfoundland, no Canadá.
Peterson coordenou uma pesquisa, publicada no começo do mês na revista "Child Development", sobre memórias de infância.
No estudo, 140 crianças entre quatro e 13 anos foram convidadas a contar suas primeiras memórias (fizemos o mesmo com quatro pessoas, leia depoimentos nesta e nas páginas seguintes).
Dois anos depois, as crianças da pesquisa tiveram que contar novamente as lembranças mais antigas e estimar quantos anos tinham quando tudo aconteceu.
As mais novas trocaram as memórias velhas por mais recentes. As maiores mantiveram as mesmas lembranças. Moral da história: esquecemos a infância enquanto ainda somos crianças.
Não há dúvida que crianças conseguem armazenar informações, segundo Martín Cammarota, pesquisador em neurofisiologia da PUC-RS.
"Elas sabem o que aconteceu ontem ou anteontem, mas são lembranças de curta duração."
A neurociência não tem certeza de por que isso acontece. Uma das hipóteses é que o cérebro ainda não estaria pronto para gravar memórias à tinta, de acordo com Rodrigo Neves Pereira, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
"É como se as crianças escrevessem a lápis no disco rígido da memória."
Estruturas cerebrais responsáveis por processar e arquivar informações não estão totalmente desenvolvidas aos dois anos ou três anos.
Na mesma direção, o neurocientista Ivan Izquierdo argumenta que, nessa idade, não dominamos totalmente a linguagem.
"As memórias de antes dos três anos são gravadas em códigos não linguísticos, que não fazem sentido depois que somos adultos."
Não por acaso, lembranças mais claras coincidem com o início da alfabetização. Algumas pessoas, porém, desenvolvem essa capacidade mais cedo. Mistérios.
Seleção inconsciente
"Amnésia infantil não tem relação com o amadurecimento do cérebro", diz logo de cara Renata Petri, psicanalista professora da Unifesp.
Para a psicanálise, parte da infância é esquecida porque as lembranças são conflitantes, dolorosas. "Aquilo que traz conflito elimina-se da consciência e vai constituir o inconsciente."
Nessa visão, o ser humano sofre os efeitos dessas memórias encobertas pelo resto da vida, mesmo sem conseguir lembrá-las. Daí viriam alguns medos e traumas.
"É comum estabelecermos a relação entre acontecimentos de infância e traumas futuros, mas não se pode reduzir a ideia de trauma a isso", afirma Fani Hisgail.
A neurologia até concorda que memórias esquecidas podem, sim, interferir na formação de novas lembranças, mas tem uma visão diferente do que é o inconsciente.
"São memórias que não estão ativas o suficiente para serem lembradas, mas que, mesmo assim, influenciam outros circuitos", comenta Gilberto Xavier, pesquisador em neurofisiologia da USP.
A influência do passado sobre o futuro esbarra em outro ponto: a competição entre acontecimentos. Não há como prever quais fatos serão lembrados a longo prazo. Depende do quanto prestamos atenção a eles, do excesso de informações e de fatores afetivos.
"Aspectos emocionais moldam a aquisição de memórias, influenciam a razão. É o que chamamos de erro de Descartes", diz Pereira.
Tombos, cortes e acidentes físicos são mais marcantes por motivos biológicos, de acordo com Xavier. "Você se lembra de um acidente para ter condições de evitá-lo. Biologicamente, esse é o sentido da memória." Parece simples. Mas, cada vez que um fato é resgatado, acrescenta-se um aspecto, uma ponta no novelo.
Depois de recordar algumas vezes acontecimentos distantes, é quase impossível separar a verdade do mito. "Criamos falsas memórias, e não há nada de patológico nem de malvado nisso", pondera Izquierdo.
É a mentira que não é mentira. Para a psicanálise, não importa. "Tudo é interpretação. Toda memória é uma leitura sem contato direto com a realidade", diz Preti.
Cada nova experiência resignifica a anterior. "De certa forma, o futuro influencia o passado."
Com informações da Folha