Artigos e Opinião

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Há algo de profundamente inquietante nas cidades contemporâneas – algo que os olhos percebem mas o espírito hesita em nomear. As ruas, avenidas e bairros que compõem nosso habitat urbano se tornaram, pouco a pouco, mausoléus de concreto onde a alma parece não mais habitar. A arquitetura atual, de formas quadradas, superfícies lisas e paletas cromáticas de um cinza resignado, já não é arte nem abrigo: é um protocolo de sobrevivência, um manual de funcionalidade sem lirismo. Em vez de expressar a grandeza ou a intimidade da existência, nossas construções revelam a mais grave das ausências: a da vida interior.

Não é apenas uma questão estética. A decadência da arquitetura é sintoma de uma civilização que desaprendeu a sonhar. Onde antes havia arabescos barrocos que flertavam com o divino, hoje há caixas pragmáticas que apenas toleram a presença humana. Onde antes os tetos imitavam o céu, agora os forros se limitam a encobrir os fios da internet. Onde antes as portas eram portais simbólicos entre o mundo e o lar, hoje são lacres ansiosos contra a insegurança ou o ruído. A cidade, que já foi poesia esculpida em pedra, tornou-se relatório técnico de planilhas imobiliárias.

Há quem defenda esse estado de coisas sob o pretexto da “eficiência”. Mas não é a economia de meios que define a pobreza de espírito? A beleza, quando expulsa pela ditadura do funcional, não apenas se ausenta – ela denuncia. A ausência de ornamento é, no fundo, ausência de linguagem. E sem linguagem, não há comunhão possível entre o edifício e seu entorno, entre o espaço e a alma humana que nele se movimenta. Somos exilados dentro daquilo que nós mesmos construímos.

Basta caminhar por qualquer metrópole moderna para perceber esse mal-estar. Os olhos, privados de encanto, deslizam sem repouso sobre fachadas indiferentes. Já não há uma janela que evoque o mistério, uma escada que sugira ascensão, uma porta que convide ao invisível. Não se trata de nostalgia vazia pelos estilos do passado – gótico, clássico, romântico ou art déco –, mas da constatação de que a arquitetura deixou de ser ponte entre o visível e o invisível. Tornou-se cega. E, com ela, cegamo-nos também.

O filósofo alemão Peter Sloterdijk escreveu que “a casa é a primeira catedral”. Habitar, nesse sentido, é um ato espiritual. Toda morada, seja individual ou coletiva, deveria conter em si algo da promessa do sagrado – não necessariamente religioso, mas simbólico, significante. No entanto, ao reduzir a arquitetura à engenharia econômica, ao tratar a cidade como planilha, e não como cosmovisão, destruímos os pequenos templos do cotidiano: as varandas com alma, os corredores com mistério, os jardins com respiração.

Essa falência simbólica da arquitetura é o reflexo de uma falência mais profunda: a da nossa imaginação moral. Estamos construindo cidades que não acreditam mais na transcendência do humano. Moradias que não se recordam da infância, escolas que não despertam curiosidade, hospitais que não acolhem com dignidade. O espaço, desprovido de significados, torna-se hostil. E a hostilidade do mundo concreto, dia após dia, deforma também nosso modo de sentir e de pensar.

Se as igrejas vazias da Europa simbolizam o abandono da fé, os edifícios sem alma de nossas cidades modernas simbolizam o abandono do espírito. Em ambos os casos, não é apenas uma mudança estética, mas uma amputação da verticalidade que outrora nos ergueu acima da mera animalidade.

O que se perdeu não foi apenas a beleza – foi a capacidade de habitar poeticamente o mundo. Como escreveu Heidegger, “habitar” é mais que residir, é permanecer no mundo de um modo atento, reverente, criador. Quando a arquitetura esquece disso, ela não apenas empobrece a paisagem: ela deseduca o olhar, anestesia a sensibilidade, transforma cidadãos em consumidores de espaço.

O problema da arquitetura moderna é, em última instância, um problema ontológico. Não se trata apenas de formas feias, mas de formas que não dizem nada. É o silêncio do concreto. É a mudez dos muros. É o vazio que grita sob a aparência da ordem.

E assim seguimos, cruzando avenidas e interiores como se atravessássemos um cemitério de ideias. A cidade tornou-se um epitáfio prolongado de tudo o que um dia ousamos sonhar: beleza, sentido, comunidade, transcendência. Resta-nos perguntar, com amarga ternura: quem habita, hoje, o que construímos? E será que, ao fim, ainda chamamos isso de habitar –ou apenas de sobreviver entre paredes?

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EDITORIAL

Santa Casa refém da própria má gestão

A Santa Casa precisa de mais do que socorros emergenciais: precisa de coragem para mudar, responsabilidade na gestão e respeito por quem sustenta sua missão

23/12/2025 07h15

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A situação vivida pela Santa Casa de Campo Grande ao fim de mais um ano é, infelizmente, a repetição de um roteiro conhecido – e previsível.

Há, pelo menos, uma década, o maior hospital filantrópico do Estado é vítima não apenas de um sistema público de saúde subfinanciado, mas, sobretudo, de escolhas administrativas equivocadas, da falta de planejamento e de uma gestão que parece incapaz de romper com seus erros históricos.

Neste fim de ano, o cenário chega a um ponto simbólico e constrangedor: a instituição depende, literalmente, de um milagre para pagar o 13º salário de seus funcionários.

Profissionais que sustentam o atendimento diário de milhares de pacientes, que enfrentam plantões exaustivos, superlotação, escassez de insumos e pressão constante, agora convivem com a angústia de não saber se receberão um direito básico. Isso não honra o nome “Santa Casa”.

Não há justiça social, não há moralidade administrativa e tampouco humanidade em deixar esses trabalhadores à mercê da incerteza.

É evidente que o problema não se resume à gestão interna. O subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é uma realidade nacional, e a Santa Casa, como tantas outras instituições filantrópicas, sofre com valores defasados, repasses insuficientes e atrasos frequentes.

O poder público tem, sim, parcela relevante de responsabilidade nesse quadro. Ignorar isso seria desonesto. No entanto, usar essa realidade como justificativa permanente para a ineficiência interna é igualmente inaceitável.

O que salta aos olhos é a aparente falta de disposição da administração do hospital em buscar eficiência, especialmente no campo financeiro.

Os números mostram que apenas o serviço da dívida – os juros e encargos pagos anualmente aos bancos – seria suficiente para quitar não apenas o 13º salário e evitar o acúmulo de outras obrigações em atraso, mas também de quitar quase toda a folha anual. Isso revela um modelo de gestão que prioriza a manutenção de passivos bancários em detrimento do compromisso com seus trabalhadores.

Mais uma vez, a saída apontada parece ser recorrer a novos empréstimos ou aguardar aportes emergenciais do poder público. Trata-se de um ciclo perverso. Endividar-se para cobrir despesas correntes, como folha de pagamento, não é uma estratégia de sustentabilidade; é um atalho para o colapso.

Empréstimos deveriam servir para investimentos, modernização, ganho de eficiência e redução de custos futuros – não para tapar buracos mensais de um caixa cronicamente desequilibrado.

O resultado é uma dívida cada vez menos saudável, maior dependência externa e nenhuma solução estrutural. Enquanto isso, a transparência sobre gastos, contratos e decisões estratégicas segue insuficiente, o que apenas aprofunda a desconfiança da sociedade e dos funcionários.

É lamentável que um hospital com tamanha importância social, histórica e simbólica chegue a esse ponto ano após ano. A Santa Casa precisa de mais do que socorros emergenciais: precisa de coragem para mudar, de responsabilidade na gestão e de respeito por quem sustenta a sua missão.

Sem isso, continuará sobrevivendo de milagres – e milagres, como se sabe, não fazem planejamento financeiro.

ARTIGOS

Terrorismo e religiosidade

Fundamentalismo dos terroristas de todos os matizes é antissemita, anticristão e anti-hislamista, porque se vale da inimizade aos valores religiosos para disseminar o ódio

22/12/2025 07h45

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A propósito do recente e trágico ataque ocorrido na Austrália, que vitimou diversas pessoas – algumas delas fatalmente – durante a pacífica celebração do Hanukkah, a festa das luzes da comunidade judaica, impõem-se algumas reflexões sobre os motivos e as consequências de tal ato.

À falta de definição mais apropriada, e sem entenderem bem o que teria motivado os ataques, aparentemente praticados por pessoas isoladas, os analistas chamaram a atenção para a facilidade com que se adquirem armamentos hoje em dia, fenômeno que ocorre também em nosso País.

É simbólico que a festa das luzes seja muito próxima dos festejos de Natal. Também no Tempo do Advento as luzes da coroa vão sendo acesas em crescente até que a Luz do Mundo venha a nascer na noite tão esperada pelos cristãos.

Jesus Cristo não selecionava ninguém. Qualquer pessoa seria bem acolhida por Ele, bastando que professasse o único mandamento propriamente cristão: ama o próximo como a ti mesmo. Aliás, o Cristo ia além e dizia: amai vossos inimigos, o que revela, igualmente, o modelo mais aberto de compreensão da pessoa do próximo.

Na verdade, o fundamentalismo dos terroristas – de todos os matizes – é antissemita, anticristão e anti-hislamista, porque se vale da inimizade aos valores religiosos para disseminar o ódio, a cultura de morte a que já se referia São João Paulo II.

Trata-se, portanto, do mesmo tipo de fundamentalismo que outros grupos de terroristas praticam para excluir as minorias de todo o tipo, mesmo as que não professem nenhuma crença.

É simbólico que tenha sido Ahmed, o sírio, a desarmar um dos terroristas, o que lhe custou dois ferimentos.

Esses terroristas disparam, inclusive pelos meios de comunicação virtual, contra todos aqueles que não pensam como eles. Eis quem são, em certo sentido, os verdadeiros fundamentalistas do ódio. Por que teriam escolhido a reunião do Hanukkah, tão plena de simbolismos?

Não nos prendamos a esse vetor. Basta atentar para os recentes ataques a uma mesquita e a uma feira natalina para que se ponha foco na essência do que está em jogo.

A enorme confusão ideológica e doutrinal do terrorismo revela, antes de tudo, mentes perturbadas, incapazes de discernir entre o bem e o mal. Ou, se quisermos embaralhar ainda mais as cartas, incapazes de discernir a esquerda da direita.

A confusão ideológica, aliás, não é apenas um sintoma de desordem mental, mas a estratégia consciente de aniquilar a pluralidade inerente à condição humana.

O extremismo, ao se apropriar de símbolos sagrados e transformá-los em bandeiras de exclusão, trai a própria essência de qualquer fé que pregue a transcendência e o amor ao Criador, pois desumaniza a criatura feita à sua imagem.

Desta forma, o verdadeiro combate ao terrorismo não se limita à repressão policial ou militar, mas passa necessariamente pela defesa intransigente da educação e do diálogo inter-religioso.

É a luz da razão e da tolerância que deve ser acesa para dissipar a escuridão do fanatismo, provando que a diferença de crença jamais pode ser motivo para a guerra, mas sim o motor para um enriquecimento mútuo da civilização.

Urge que os homens de boa vontade se ergam, em uníssono, em favor de uma cultura de paz e de liberdade religiosa, e que todas as luzes se acendam em alerta contra toda e qualquer manifestação terrorista.

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