O Tribunal de Contas da União decidiu, na semana passada, que o presidente Lula está liberado de fazer a devolução do relógio que ganhou de Jacques Chirad durante as comemorações do Ano do Brasil na França. A decisão foi alvo de enorme repercussão e o presente avaliado em R$ 80 mil acabou se tornando peça central na queda de braços da polarização política nacional.
Apesar de o relógio ter sido presenteado há quase 20 anos, ainda em 2005, durante o primeiro mandato de Lula, o caso foi alvo de questionamentos agora. A oposição acionou o TCU com um pedido de investigação, alegando que a peça deveria ser devolvida à União.
Os ministros concluíram que, por não haver legislação que especifique exatamente quais bens podem ou não ser incorporados ao patrimônio pessoal dos presidentes, não caberia ao Tribunal determinar a devolução.
A decisão criou ainda mais polêmica do que a denúncia. Isso porque os ministros acabaram abrindo uma brecha importante no caso das joias recebidas por Jair Bolsonaro do governo da Arábia Saudita. Em 2023, por unanimidade, o TCU decidiu que o ex-presidente tinha de devolver as peças avaliadas em R$ 6,8 milhões.
A questão é que, em 2016, o Tribunal definiu que os presentes recebidos pelos presidentes deveriam ser considerados patrimônio público, com exceção daqueles de uso personalíssimo. Porém, não há regras claras que possam ancorar a decisão de que o relógio francês seja de uso pessoal ao passo em que as joias sauditas devam ser incorporadas à União.
Por causa dos presentes, Bolsonaro e mais 11 pessoas foram indiciados, no mês passado, pelos crimes de associação criminosa, lavagem de dinheiro e apropriação de bens públicos.
Após a decisão do TCU, de âmbito meramente administrativo, a Polícia Federal se manifestou dizendo que nada muda em relação ao indiciamento e que, agora, o processo está nas mãos do Supremo Tribunal Federal.
E, sim, é isso mesmo. O STF é quem vai analisar se houve ou não qualquer tipo de irregularidade ou crime. Mas o fato é que a nova posição do TCU fortalece Bolsonaro junto à opinião pública e, no xadrez da polarização, Lula quer, agora, movimentar-se para devolver o relógio.
A meu ver, no entanto, a principal questão em torno desse episódio não gira em torno dos embates políticos ou dos valores das joias, nem mesmo da definição sobre haver ou não direito de uso pessoal dos presentes.
O que fica difícil compreender é os motivos que levam um presidente a ser liberado da devolução enquanto o outro corre risco de condenação criminal. É um peso e duas medidas. Na verdade, portanto, esse caso nos convida a refletir sobre coerência.