E se existisse, nos governos estaduais e municipais, um canal de denúncia de assédio – e de outros ilícitos –, conduzido por empresa externa, que garantisse anonimato ao denunciante e acolhimento humanizado ao assediado, com psicólogos, capaz de transformar relatos individuais em inteligência para orientar políticas de prevenção e responsabilização?
Mais do que um espaço para registrar ocorrências, um canal assim seria confiável, porque protege contra retaliação, e especializado porque não se confunde com ouvidorias internas. Ele daria voz a quem sofre e permitiria que governos conhecessem, com clareza, a real dimensão do problema para agir com responsabilidade e assertividade.
Mas é preciso deixar claro: um canal, por si só, não resolve. Ele precisa estar conectado a uma estratégia mais ampla de governança, na qual o enfrentamento do assédio não seja tratado como assunto de uma única Pasta, mas como um tema transversal.
Isso significa articular esforços entre controladoria, administração, saúde, capacitação e comunicação, construindo respostas conjuntas e sustentáveis. Somente quando essas áreas caminham em sinergia é que se cria a confiança necessária para transformar relatos individuais em inteligência coletiva e em políticas públicas eficazes.
Trata-se, portanto, de uma resposta de Estado, e não de governo. Um compromisso institucional com a dignidade do servidor público, independentemente da gestão que esteja no poder. O assédio não escolhe partidos ou esferas: instala-se onde há falhas de liderança e ausência de políticas protetivas.
Ignorar o tema custa caro. O assédio corrói a saúde psicológica, a motivação e a confiança. Onde imperam medo, silêncio e humilhação, não há engajamento genuíno nem entrega sustentável. É a erosão silenciosa da produtividade e do espírito público.
Por isso, precisamos falar sobre assédio no governo com a mesma seriedade com que falamos de corrupção. Ambos nascem de relações de poder mal cuidadas.
Combater um sem enfrentar o outro é criar uma integridade capenga, de fachada. A integridade real precisa estar ancorada em valores de respeito, justiça e cuidado.
E aqui entra o papel do compliance humanizado: programas que não se limitam a vigiar e punir, mas que reconhecem no servidor público um ser humano com potencial para florescer. Cuidar do servidor é cuidar do serviço público. A dignidade de quem serve é inseparável da qualidade do serviço prestado ao cidadão.
O futuro da boa governança está em líderes preparados para equilibrar resultados com cuidado; em governos que entendem que prevenir o assédio não é apenas uma obrigação legal, mas uma decisão ética e estratégica. Porque só em ambientes saudáveis o servidor pode se desenvolver, e só quando ele floresce, floresce também o serviço público.
O que ainda falta ao setor público é transformar o assédio em objeto de conhecimento estruturado.
Hoje, o fenômeno segue em grande parte invisível: normalizado no cotidiano, subestimado nas estatísticas (quando existentes), ausente das prioridades de gestão. Sem dados consistentes, não há inteligência; sem inteligência, não há políticas eficazes.
Reconhecer e analisar o assédio é condição indispensável para tirá-lo da sombra e colocá-lo no centro da agenda de governança.
Só assim será possível prevenir, responsabilizar e, sobretudo, proteger a dignidade de quem serve ao público.


