O dicionário Aurélio, que acompanhou a formação de gerações de brasileiros e brasileiras, nos ensina que o verbo transigir vem do latim transigere, significando originalmente “impelir através” ou “levar a cabo”. Seu primeiro conceito é, no português moderno, “chegar a acordo, condescender”. Nos dias de hoje, em que o mundo político se vê em polarização inaudita, perdido em numerosos e muitas vezes inócuos e toscos debates em redes sociais, sem vigor interpretativo, países europeus forjados na mais fina cepa do iluminismo oitocentista retomam o substantivo “transigência” como norte para a boa política. Transigência, no Aurélio, é o ato ou efeito de transigir, condescendência, tolerância.
Como a maioria dos vocábulos presentes na teoria política, transigência comporta usos opostos, a depender da situação. Se Rui Barbosa em sua “Oração aos Moços” exortava os jovens a não flertar com a popularidade – “Não transijais com as conveniências” –, a arte política depende exatamente da popularidade, das conveniências e da construção de consensos. Transigir não significa contemporizar com o crime, com a irregularidade ou com a má-fé. Da mesma forma, o termo conciliar pode ser visto como um instrumento de proteção dos interesses de minorias alheias ao interesse público, ou um pré-requisito para o atendimento desses interesses, o da res publica.
No Brasil de hoje, estamos perdendo a capacidade de ouvir, de aproximar pessoas e posições políticas, de construir consensos mínimos em favor dos mais diversos setores da sociedade brasileira. O País que se orgulhava de ser uma sociedade miscigenada precocemente (ao menos em alguma medida), uma terra aberta aos imigrantes e um lugar em que árabes e judeus, católicos e protestantes e “gregos e troianos” podiam ser bons vizinhos, transformou-se em pouco tempo em sociedade tensionada, terra de atritos, lugar de incompreensão. Já foi demonstrado sobejamente na história da América Latina que a polarização política e os radicalismos não chegam a bom termo. É hora de recuperar os valores mais profundos da nossa sociedade, uma sociedade desigual é certo, mas harmônica sempre que possível.
O atual governo tem papel relevante a cumprir, sem abdicar de seus apoios nas eleições e no exercício do poder. Eleitores e eleitoras do atual governo – entre os quais me situo – sabem que governar é dialogar, ouvir as demandas e reivindicações, transigir no que é legítimo, legal e que está conforme o Orçamento federal. Entretanto, algumas lideranças dos segmentos que apoiaram Jair Bolsonaro – empresários, evangélicos, militares – precisam compreender que a gestão do País só será eficiente se voltada para todos, sem distinções, nos termos da Constituição.
Dialogar, ouvir e transigir, quando adequado, são orientações que aprendi muito cedo na carreira diplomática, a qual tenho orgulho de fazer parte. Também neste aspecto nossa Carta Magna é exemplar ao dispor em seu art. 4º os princípios da política internacional do País. São cláusulas da Constituição Federal a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, entre outras igualmente relevantes. Recordo que alguns desses princípios já estavam presentes na diplomacia brasileira antes mesmo da redemocratização, como a defesa dos direitos humanos, a autodeterminação, a não intervenção e a defesa da paz.
Enfim, aprendi com a Bíblia, com o Velho e com o Novo Testamento, assim como em minha formação como diplomata, que a arte da política se faz com a tolerância, o diálogo e a transigência.


