ACONTECEU EM 1972...
No início dos anos 1970, quando a telefonia ainda era primária e internet um mero devaneio ficcional, a maior velocidade com que as informações eram transmitidas afetava a precisão com que chegavam. E criavam proporções curiosas. Principalmente quando o assunto em voga envolvia misticismo, religiosidade e cura de doenças à época ainda sem ou com cura difícil.
Foi nesse caldeirão de ingredientes, habituais em tempos mais remotos, que o Correio do Estado trouxe, em uma série de reportagens especiais entre os dias 29 de julho e 5 de agosto de 1972, a história de Cacilda Gonçalves de Paula, mãe de santo da umbanda de Corumbá que naquele ano ganharia manchetes em todo o Brasil pelos supostos poderes milagrosos que curavam qualquer tipo de doença. Qualquer mesmo, segundo os relatos.
"Cacilda atende 300 pessoas por dia, a cidade de Corumbá Transformada em um grande hospital" foi a manchete de 2 de agosto de 1972, onde o Correio apresentou o perfil da mãe de santo, que incorporava 'Pai João'.
"Corumbá está recebendo nestes dias uma grande multidão de pessoas vindas de toda parte do País, como nunca aconteceu na sua história. É gente de todo os lugares: rico ou pobre, de diferentes raças ou credos, homens, mulheres e crianças doentes em busca de uma última esperança: Cacilda", descrevia o texto.
Antes, na primeira aparição, no final de julho, um texto bem menos comedido acusava a médium de fazer com que fiéis "comessem carne seca crua e pedras para depois vomitarem e dizerem que eram demônios."
No relato posterior, é contado que Mãe Cacilda nasceu em 15 de novembro de 1936, em Cuiabá, na época capital de todo o Mato Grosso. Conheceu a umbanda aos 15 anos, contra a vontade da família, e se tornou praticante assídua, casando-se com um pai de santo. Em 1964, a fama começou a se espalhar com a primeira cura: fez um menino de 12 anos do interior de São Paulo, paralítico, "largar as muletas e começar a andar."
O feito foi o suficiente para que em oito anos a favela corumbaense onde Cacilda mantinha seu terreiro ("um humilde barraco de táboa (sic) de caixão, folhas de zinco, chão batido e muita fé", segundo o texto) virou atração turística, atraindo gente de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e até Pernambuco, Paraguai e Bolívia.

O pai de Cacilda, no barraco em frente ao terreiro da filha (Reprodução)
COMÉRCIO INFORMAL
O Correio estampa, em sua capa do dia seguinte (3 de agosto) os reflexos do que a multidão atraída por Cacilda proporcionava à Cidade Branca. Com o próprio pai da mãe de santo, Mariano Gonçalves de Paulo, transformando seu barraco em frente ao terreiro em comércio para abastecer os visitantes, abriu-se precedente para que a modesta comunidade faturasse.
Segundo o relato, pagava-se por tudo. Precisa usar o banheiro? Basta pagar 300 cruzeiros (moeda vigente à época) nos barracos, muitos ainda sem saneamento básico. Que tal um descanso? Crianças e mulheres cobravam 100 cruzeiros para ficar na fila por um período de 12 horas.
A situação mais absurda, no entanto, é relatada no próprio texto. "Além de tudo isso apareciam ainda os vendedores ambulantes que, sem o mínimo preceito de higiene, vendiam um copo com água a Cr$ 2,00 e comestíveis caseiros por preços absurdos, numa promiscuidade entre doentes, muitos com molestias (sic) transmissíveis."
Como se não bastasse o risco de contaminação eminente por uma "moléstia", muitos dos romeiros, tendo de esperar dias pelo encontro com Cacilda e sem local para hospedagem (hotéis estariam com lotação máxima em Corumbá), montaram um verdadeiro acampamento vizinho à favela. Em meio às centenas de ônibus estacionados, relata a edição, alguns aproveitavam a espera pela 'consulta' para conhecer o Pantanal e a vizinha boliviana Porto Suarez, onde voltavam com chamativos e pesados 'pallas', vestimenta característica dos vizinhos, mas de uso pouco indicado para o calor corumbaense.
Criação de acampamento chamou a atenção pela falta de higiene (Reprodução)
AÇÕES
Tamanha peregrinação a Corumbá (a reportagem cita aviões, trens e barcos lotados) é claro que não passaria despercebida ao regime militar vigente naquela época, ainda mais em um cenário de Guerrilha do Araguaia no norte do então Mato Grosso unificado e os debates pela sua divisão ganhando cada vez mais força.
O primeiro sinal veio em 4 de agosto, noticiado pelo Correio: Helio Comocard, identificando-se como oficial de Justiça de São Paulo, foi ao local dizendo-se doente e saiu da favela direto para o gabinete da prefeitura de Corumbá e à sede da recém-criada Polícia Militar exigindo atitudes contra o que chamou de "calamidade pública": lixo acumulado, forte cheiro de urina e fezes e cobrança inflacionada de preços de comida.
A própria edição relata que o pedido foi aceito. A limpeza pública passou a circular diariamente, os preços foram tabelados e as bebidas passaram a ser servidas "em copo de papel", relata o texto. O detalhe: navios da Marinha foram ancorados no porto corumbaense para abrigar as famílias que esperam por Cacilda, acabando assim com o acampamento.
O que o jornal não sabia à época e que fora revelado posteriormente é que o nome Helio Comocard apareceria anteriormente em outra situação envolvendo uma mãe de santo chamada Cacilda, mas de sobrenome Assis, mas no Rio de Janeiro e que ao invés de 'Pai João', baixava um exú pouco convencional, que reunia milhares de pessoas, bebia dezenas de garrafas de cachaça e, sempre fumando charuto, molhava os fiéis (doentes, como em Corumbá, mas também bicheiros, artistas e prostitutas) com o marafo 'batizado', aos berros.
Como revelado pelo Centro de Estudos de Religiões de Matriz Afrodescendentes da Universidade de São Paulo (USP), Comocard se encaixa no perfil do tipo de agente do temido Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar designado para investigar atividades em templos religiosos, prática recorrente depois de confirmada participação de freis católicos na luta armada da esquerda guerrilheira nos anos 1960.
Com umbanda, candomblé e espiritismo, a precaução era a outra. Desde os anos 1950, publicações como a revista "O Cruzeiro" dedicavam páginas e páginas aos rituais, poucos ortodoxos aos cristãos. Nesse cenário surge a Cacilda carioca, que diferente da nossa, atraiu fama por nunca se negar a ser filmada ou fotografada, chegando a promover shows de samba e sessões coletivas para abençoar carros e motoristas, levando mais de 30 mil pessoas semanalmente ao seu terreiro, na zona oeste da Cidade Maravilhosa.
Mas com o aumento considerável de casos noticiados de mortes em operações de doutores espíritas e pressão de médicos e higienistas, o show mostrado por programas populares apelativos como o de Jacinto Figueira Júnior (O Homem do Sapato Branco), em São Paulo, e Flávio Cavalcanti, no Rio, ambos com pais e mães de santos ibncorporando espíritos em pleno palco, contribuíram para a campanha contra os umbandistas.
NO BRASIL
Talvez com medo dessa perseguição, nossa Cacilda sempre preferiu o anonimato. O próprio Correio, no mesmo dia 4 de agosto, destacava que a mãe de santo preferia não ser fotografada. Com o necessário ceticismo jornalístico e muito diferente do sensacionalismo do Homem do Sapato Branco e Cruzeiro, contudo, o jornal apenas alertava que os casos de cura aconteciam sempre com "pessoas que moram longe." "Não há um morador local que tenha passado pelas sessões de Cacilda", alertava, ao mesmo tempo que ponderava que nada era cobrado pelas suas orações, apenas doações ao terreiro, como velas e comida. O caráter e respeitoso na maioria da abordagem sobre o tema.
Cacilda só iria voltar às páginas do Correio em novembro daquele ano, informando sua viagem, cujo destino seria conhecido apenas no final do ano seguinte, nas páginas da revista Placar, da Editora Abril. Em uma edição de dezembro de 1973, em uma reportagem sobre o ponta-direita Piau, que jogou por São Paulo, Portuguesa e Corinthians, ele mesmo relata que foi procurar cura para as constantes contusões com Cacilda. Natural de Lins, cidade no interior paulista relativamente próxima de Mato Grosso do Sul, disse ainda que levou a mãe de santo para ser a benzedeira oficial do Linense, clube da cidade. Repetiria o feito na Lusa paulistana, sob os olhares desconfiados do então presidente do clube, que o acabaria dispensando no final de 1972 justamente pelas seguidas contusões.
Já em rede nacional pela 'TV Globo', Flávio Cavalcanti tentou promover o encontro de Cacildas nos idos de 1975, em episódio relatado pelo jornal carioca 'O Dia'. Diante da recusa da pantaneira, sobrou à carioca duvidar de suas capacidades curandeiras no palco, segundo o periódico.
Cacilda voltou às páginas - de maneira involuntária - em 1977, no folclórico jornal paulistano 'Noticías Populares', que em maio daquele ano relatara em suas páginas o caso de "um pantaneiro baleado pela polícia após roubar uma loja de eletrônicos e que sobreviveu devido aos passes tomados pela mãe Cacilda em sua terra." Cheio de preconceitos, o texto diz que uma das fórmulas para se ter a imortalidade envolvia beber o sangue de jacarés.
O tempo passou, felizmente a tolerância religiosa se tornou maior, as crenças em milagres diminuíram e, segundo sites na internet, Cacilda morreu nos anos 1990, com uma legião de fiéis das religiões de matriz africana no Mato Grosso do Sul. Como legado, além de ser um dos marcos da diversidade religiosa no Estado, virou tema de dezenas de trabalhos acadêmicos sobre fé e turismo religioso, além de costumeiramente ser homenageada e cantada nos versos dos sambas-enredos do Carnaval corumbaense.

*Rotineiramente nossa equipe convida você, leitor, a embarcar com a gente na máquina do tempo dos 64 anos de história do jornal mais tradicional e querido de Mato Grosso do Sul para reviver reportagens, causos e histórias que marcaram nossa trajetória ao longo desse rico período. Você encontrará aqui desde fatos relevantes à história do nosso Estado até acontecimentos curiosos,que deixaram nossas linhas para fomentar, até hoje, o imaginário da população sul-mato-grossense. Embarque com a gente e reviva junto conosco o que de melhor nosso arquivo tem a oferecer.
E você leitor, gostaria de relembrar um fato, uma reportagem, uma história de nossa história. Nos envie sua sugestão pelo nosso whatsapp: (67) 99971-4437.


