Um dos pilares da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a moradia ainda é um sonho distante para muitos. Em Campo Grande, famílias da antiga favela Cidade de Deus, desapropriada na gestão do prefeito Alcides Bernal (PP), estão há cinco anos em barracos improvisados à espera de unidades habitacionais que nunca foram entregues.
Em 2016, ainda na gestão de Bernal, os moradores da antiga comunidade foram encaminhados para quatro áreas de reassentamento nos bairros Vespasiano Martins, Jardim Canguru, Pedro Teruel (ao lado do Dom Antônio Barbosa) e Loteamento Bom Retiro (atrás da Vila Nasser).
Na prática, o antigo prefeito conseguiu transformar uma favela em quatro.
Na época, a Organização Não Governamental (Ong) Morhar foi contratada pela Prefeitura de Campo Grande para construir casas populares para os moradores do entorno do aterro sanitário.
O convênio de R$ 3,6 milhões (desse total, R$ 2,7 milhões foram efetivamente pagos à entidade) entregou apenas 42 das 328 moradias prometidas por Bernal, o que resultou em investigação do Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS).
A reportagem do Correio do Estado visitou os quatro bairros, e, além das promessas nunca cumpridas, moradores relataram problemas estruturais, despejo e frustrações pelos lares que nunca existiram.
Com o abandono das obras em algumas regiões, famílias foram obrigadas a permanecer em situação de vulnerabilidade social, quando até mesmo a mudança de tempo é sinônimo de preocupação.
RETOMADA
A Prefeitura de Campo Grande e o governo do Estado de Mato Grosso do Sul assinaram em junho de 2020 a contratação de uma empresa para a finalização das unidades habitacionais de famílias da antiga Cidade de Deus.
O convênio foi realizado para a conclusão de 150 casas com um investimento de R$ 7,8 milhões para 52 unidades habitacionais no Jardim Canguru e 98 no Loteamento Pedro Teruel. Foram investidos R$ 2,5 milhões do Estado e R$ 5,3 milhões do município para a retomada das obras, que foram iniciadas, mas não finalizadas.
BOM RETIRO
No Bom Retiro, parte dos moradores da extinta Cidade de Deus já receberam 117 moradias por meio da Ação Casa Pronta, iniciativa da Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários (Amhasf) e Fundação Social do Trabalho de Campo Grande (Funsat), em parceria com o governo do Estado.
O programa capacitou mais de 150 moradores, que aprenderam novas profissões integrantes do ramo da construção civil.
No total, já foram entregues 123 casas na comunidade, restando apenas 13 habitações em processo de finalização. O aposentado Nadir Assis, 65 anos, afirmou que após deixar a Cidade de Deus em 2016 permaneceu por mais três anos morando em um barraco no novo bairro.
Com o começo marcado por dificuldades, havia falta de acesso aos itens básicos, além da locomoção.
“Não havia transporte público para nós, mas agora já temos até esgoto na rua. Espero que em pouco tempo o asfalto passe e tudo melhore ainda mais”, disse Assis.
Após anos de sofrimento, Nadir hoje encontra a segurança em um lar de alvenaria, cenário ainda distante para muitos de seus companheiros da Cidade de Deus. “Agora tenho a tranquilidade que eu sempre quis, na idade em que eu estou já me sinto seguro morando aqui”, reiterou.
VESPASIANO MARTINS
A sensação de tranquilidade teve prazo de validade para 42 famílias no loteamento Vespasiano Martins. Após o reassentamento em 2016, os problemas estruturais começaram a surgir, e em 2017 foi constatado que o solo aflorante não era propício para a construção. Por esta razão, todas as casas foram condenadas.
O cenário atual é marcado por duas realidades: em um lado da rua, os entulhos se acumulam, enterrando anos de esperança pela tranquilidade ainda desejada; do outro lado, os moradores que ainda permanecem no bairro esperam pela chegada das patrolas e pela promessa de novas casas.
A dona de casa Aline Dias, 30 anos, que mora há cinco anos no Vespasiano Martins encara com relutância a mudança para o Parque do Sabiá.
“Nos disseram que seremos removidos até 1º de agosto. Estamos perdidos e tristes, porque fizemos melhorias na nossa casa daqui, colocamos ferragem, muro e não queremos ir embora”, disse.
Para o pedreiro Joni da Silva, 59 anos, a nova mudança é esperança para encerrar os anos em que as fortes chuvas transformavam a rua em rio.
“Nós chegamos aqui na época do prefeito Alcides Bernal, em uma chuva danada, água escorrendo para tudo quanto é lado. A drenagem não foi bem-feita, muitas casas ficavam praticamente alagadas e aqui não foi planejado para ser uma grande obra”, relatou.
Conforme a prefeitura, o reassentamento no Parque do Sabiá deve contemplar 42 famílias do Vespasiano Martins e mais cinco unidades serão destinadas às famílias em situação de vulnerabilidade, a pedido do MPMS.
Segundo Miris Escobar, 28 anos, que já está instalada na nova moradia, a mudança para o novo bairro trouxe mais segurança e, apesar da tristeza por parte de sua história ser demolida, a conquista da casa própria foi comemorada.
“Nós moramos na Cidade de Deus por quatro anos e ficamos por mais quatro no Vespasiano Martins, até que nos mandaram para cá. Ao mesmo tempo que fiquei feliz pela mudança, bate uma tristeza por parte da nossa história ficar para trás, a patrola passando em cima de tudo parecia um filme, e só restou a nossa árvore na frente”.
A Prefeitura de Campo Grande investiu R$ 2.632.000,00 na construção das novas moradias. A previsão é de que as 17 unidades restantes sejam concluídas até o fim deste mês.
JARDIM CANGURU
Em fase mais atrasada nas obras, as famílias do Jardim Canguru convivem com o cenário de expectativa e realidade. Ana Carolina de Jesus, 21 anos, relatou que há cinco anos mora em um barraco nos fundos da casa que um dia a foi prometida.
Com apenas as paredes erguidas, o esboço da casa é uma dura paisagem para quem sonha em não passar mais por frio e por fortes chuvas da Capital.
“Nós chegamos bem no fim, quando a favela Cidade de Deus deixou de existir e começaram com o processo de retirada. Demorou muito tempo para construírem as nossas casas, nos prometeram que haveria reformas nos quatro setores, e até agora no nosso as obras continuam inacabadas", disse Ana Carolina.
"Às vezes mandam só as máquinas para jogar pedras nas ruas enquanto continuamos no improviso”, completou.
Lucimara Escobar, 32 anos, cansou de esperar pela iniciativa pública, e, com muita dificuldade, conseguiu dar andamento em sua casa.
“Muitos moradores fizeram por conta própria, e a minha eu mesma construí. Nos foi repassado apenas que esse investimento será abatido nas parcelas e que eles não iriam mexer mais nas nossas casas”, relatou.
PEDRO TERUEL
Depois de esperar seis anos por uma residência, a dona de casa Alessandra Moraes, 27 anos, reflete no olhar a felicidade pelo teto seguro e à prova de chuvas. Há pelo menos 15 dias, seu novo endereço é no loteamento Pedro Teruel.
“Fiquei no Bom Retiro por cinco anos, morava no barraco e depois de seis anos a casa finalmente saiu. Foram tempos de muito sofrimento, debaixo de chuva, muito sol, barraco de lona caindo na minha cabeça. Era horrível, e eu dependia de doações para viver com os meus três filhos”, relatou.
A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Campo Grande para saber o cronograma de entrega para o restante das casas, mas até o fechamento desta edição não houve resposta.