Lourival Bezerra de Sá morreu no dia 5 de outubro do ano passado, aos 78 anos, em Campo Grande. Mas após quatro meses, o corpo segue no Instituto de Medicina e Odontologia Legal (IMOL). Isso porque após a morte do idoso, foi constatado que na verdade se tratava de uma mulher, que não tem identificação válida e por isso pode ser sepultada como indigente.
A história ganha ainda mais ar de mistério, pois a suposta esposa da mulher que viveu como homem não esclarece os fatos para polícia. Foi com ela que Lourival viveu os últimos 35 anos. Ele inclusive tem dois filhos registrados em seu nome com ela - um adotado - e outros quatro com a primeira esposa, Maria Olina de Souza Apollo, com quem viveu em Goiânia (GO) e Ituverava, no interior de São Paulo. Lourival e Maria Olina se separaram e ele seguiu sozinho para Cuiabá (MT), onde conheceu a mulher com que morou até sua morte. Juntos se mudaram para Campo Grande.
Duas mulheres, seis “filhos” e quatro estados diferentes são peças do quebra-cabeça que a Polícia Civil de Campo Grande tenta agora montar para descobrir quem realmente foi a pessoa que viveu suas quase oito décadas como Lourival.
Para a companheira de décadas, que não teve o nome divulgado, ele revelou em seu leito de morte que nasceu com o nome de Enedina Maria de Jesus, em Bom Conselho, interior de Pernambuco, mas sempre disse aos amigos que era de Palmeira dos Índios, em Alagoas. Segundo a delegada que investiga o caso, Christiane Grossi, a polícia tenta descobrir quem foi Enedina e porque adotou a identidade masculina. “São muitas hipóteses que nós temos. Ela pode ter se transvestido para conseguir emprego; naquela época [anos 60] era difícil para uma mulher conseguir um trabalho. Ou se é um caso dela ser transgênero. Em 1960 também era complicado para ela”.
A polícia procura em testemunhas a chave para fechar o caso. E quem pode ajudar a desvendar o caso é o então namorado de Maria Olina, que estava com ela quando sofreu um acidente de carro no norte de Tocantins provocando sua morte. “Ela estava com esse namorado chamado Anísio que sobreviveu. A gente está procurando ele porque talvez a Maria tenha contado algo sobre a história do Lourival que pode nos ajudar”, contou a delegada.
Ainda de acordo a oficial, a vítima tinha somente uma relação de cumplicidade com as companheiras, que não sabiam sobre a condição biológica de Lourival. Ele, inclusive, chegou registrar seis filhos, quatro com Maria Olina e dois com a mulher que o acompanhou até o resto da vida. Ela já tinha um filho e procurou o idoso quando ele fazia atendimentos espirituais em Cuiabá (MT). Tempo depois ela começou a fazer serviços domésticos para o espiritualista e quando se aproximaram, ela se tornou a cuidadora dele.
“Quando ela decidiu ir embora de Cuiabá, ele foi atrás dela na rodoviária porque ele iria embora com ela. Moraram em Franca [SP], que fica a cerca de uma hora de Ituverava, antes de se instalarem em Campo Grande. Aqui ele foi pintor, vendedor, construtor e nos últimos anos fazia os atendimentos em um centro espírita”, contou a delegada.
Lourival sempre viveu como homem (Foto: Divulgação)Sempre muito discreto, até dentro de casa, Lourival sempre teve muito cuidado para não ser visto nu. Banhos com portas sempre trancadas e nas raras vezes que ia ao médico, não levava acompanhante. Cerca de cinco dias antes de morrer, a cuidadora tentou dar banho em Lourival e, quando foi tirar a camiseta dele, viu que ele usava faixas para esconder os seios. Segundo a delegada, mesmo com o sentimento de traição, a mulher o questionou, mas a vítima só revelou a identidade escondida pouco antes de morrer.
Desde então o corpo está no Imol esperando o fim da investigação. O diretor do Instituto de Identificação, Maurilton Ferreira, disse que as impressões digitais coletadas de Lourival foram enviadas para todo o país. “Tentamos no Rio Grande do Sul, Pernambuco, Mato Grosso, Tocantins, Paraná, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Goiás, mas a resposta de todos foi negativa, que não foi identificado, ou seja, aquelas impressões digitais não foram encontradas nos cadastros desses estados”.
A outra hipótese levantadas pela polícia é que Lourival seja um homem transgênero, que, segundo o professor de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Tiago Duque, é relacionada sobre a forma como a pessoa se identifica. “Independente do que está registrado ou do órgão genital da pessoa, ele viveu como um homem, ele se entendia publicamente como um homem”, disse ele.
Ainda segundo o professor, mesmo que a investigação não seja concluída, não há motivos para enterrar o homem como indigente. “Ele tem um endereço, uma família, construiu uma história e isso tem que ser respeitado”, concluiu.
Foto: Divulgação* Colaborou Natália Yahn.


