Se uma onça-pintada pudesse ser entrevistada, talvez seria o principal personagem procurado para uma série de matérias e reportagens no Estado e no País desde abril deste ano.
Um ataque ocorrido na zona rural de Aquidauana, na região do Rio Touro Morto, no Pantanal, abriu um histórico trágico, trazendo medo e suscitando muitas discussões: a morte do caseiro Jorge Avalo, de 60 anos, atacado por uma onça e devorado por pelo menos um animal – há ao menos duas onças-pintadas na região. Caso incomum, mas que trouxe à tona diversas preocupações.
Depois desse caso, registrado em 21 de abril, um avistamento de onça-pintada na zona urbana de Corumbá, também no Pantanal, ganhou mais destaque. Esses avistamentos já ocorriam desde março, mas a morte de Jorge gerou uma escalada de preocupação de moradores que vivem às margens do Canal Tamengo.
Na Capital do Pantanal, a onça atacou apenas cachorros, apareceu em imagens de câmeras de segurança e foi afugentada com gritos de moradores – tutores dos cães perseguidos.
Sem poder ter a “fala da onça”, quem analisa o cenário no Pantanal é o médico-veterinário Diego Viana. O doutorando na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) é um especialista que estuda o animal há mais de uma década, nasceu e vive em Corumbá e tem contato com onças por relação familiar, já que o avô foi caçador da espécie no século passado.
Há uma superpopulação de onças? O comportamento delas está alterado? É preciso mesmo ter medo do animal? Será que o ser humano perdeu a habilidade de coexistir com grandes felinos? Esses são os temas explorados nessa entrevista.
É possível avaliar, por meio de estudos, que o comportamento de grandes felinos, como as onças-pintadas, pode estar sofrendo alguma alteração muito significativa no Pantanal?
Estudos realizados em áreas específicas do Pantanal indicam que as onças-pintadas apresentaram alterações no horário de maior atividade e passaram a ocupar áreas diferentes logo após os incêndios florestais.
Observa-se também uma tendência de readaptação comportamental com o passar do tempo, à medida que os ambientes se recuperam. No entanto, essas mudanças parecem estar associadas a fatores locais ou sazonais, não sendo necessariamente representativas de uma transformação generalizada em todo o bioma.
Além disso, ainda são escassas as séries temporais longas e abrangentes que permitam afirmar, com segurança, que essas alterações configuram uma mudança significativa de comportamento em escala populacional.
O caso do ataque ao caseiro em Aquidauana, na região do Touro Morto, pode ter gerado uma preocupação maior que o comum para comunidades e moradores de áreas onde há avistamento de onças?
O caso pode ter aumentado a preocupação entre moradores de áreas com avistamentos de onças. O medo é uma reação legítima e deve ser respeitado, especialmente quando um caso raro como esse rompe o senso de segurança das comunidades.
No entanto, é essencial que a comunicação sobre o evento seja feita com responsabilidade, equilibrando o respeito ao medo com informações técnicas claras. Episódios assim reforçam a importância de protocolos de resposta, ações educativas e estratégias de prevenção que promovam a segurança das pessoas sem comprometer a conservação das espécies.
Ainda sobre o caso de Aquidauana, como, de forma técnica, aquele ataque vem sendo analisado e discutido por pesquisadores? Existem orientações que precisam ser trabalhadas para evitar outra tragédia como essa?
O ataque em Touro Morto, Aquidauana, teve grande impacto no meio científico por ser um evento raro e preocupante. Ele reforçou a urgência de criar protocolos nacionais específicos para responder a incidentes com grandes felinos e destacou a necessidade de pesquisas mais integradas sobre comportamento animal, uso do espaço em áreas antrópicas e percepção de risco por parte das comunidades.
O caso também alertou para a importância da comunicação responsável, que respeite o medo das pessoas sem alimentar o sensacionalismo.
Como o caso gerou impacto sobre o meio científico no estudo de grandes felinos?
Orientações práticas, que agora demandam aplicação em campo: gerenciamento de resíduos e carcaças, adequação de cercas e iluminação, educação local e protocolos de ação rápida.
O objetivo é prevenir tragédias semelhantes, ao mesmo tempo em que se mantém a conservação das onças-pintadas e a segurança das comunidades.
Existe uma percepção popular que pode estar ocorrendo uma possível superpopulação de onças-pintadas no Pantanal. Como essa questão pode ser analisada em termos científicos?
Embora exista uma percepção crescente de que há uma superpopulação de onças-pintadas no Pantanal, não há evidências científicas que confirmem essa hipótese. Estudos indicam que o aumento nos avistamentos pode estar relacionado a alterações no uso do espaço pelas onças, em função da perda de habitat, queimadas, escassez de presas e presença humana.
É fundamental respeitar essa percepção das pessoas, pois ela reflete vivências reais, medos legítimos e o impacto direto da convivência com grandes predadores.
Ao mesmo tempo, a resposta a essas preocupações deve ser construída com base em dados técnicos e monitoramento contínuo, evitando interpretações simplificadas que possam comprometer tanto a segurança das comunidades quanto a conservação da espécie.
Por que a onça-pintada aparenta gerar relações muito extremas entre amor, admiração e também certo ódio?
A onça é historicamente associada à força, à beleza e ao mistério nas culturas indígenas e tradicionais da América Latina. É tida como um animal de poder, respeitado e temido.
No entanto, com a colonização e a expansão da pecuária, esse símbolo foi ressignificado de entidade sagrada a ameaça concreta ao modo de vida rural. Para pecuaristas e ribeirinhos, a onça pode significar perda econômica real, por meio da predação de animais domésticos ou bovinos.
Isso alimenta percepções de injustiça ou abandono por parte do Estado e pesquisadores. Casos isolados, como ataques ou aproximações de onças a áreas urbanas, costumam ganhar destaque na imprensa, muitas vezes, com linguagem sensacionalista. Isso intensifica o medo e reforça uma imagem de animal perigoso e descontrolado, mesmo quando os dados mostram que tais ocorrências são raras.
Por outro lado, a onça é vista como símbolo da biodiversidade brasileira, atraindo turistas, pesquisadores e campanhas ambientais. Em áreas como Porto Jofre [MT], ela se tornou uma fonte de renda por meio do ecoturismo. Concluindo: quem se sente ouvido e incluído nas decisões, tende a valorizar a coexistência, quem se sente desamparado ou prejudicado, tende a reagir com hostilidade ou rejeição.
Com relação aos avistamentos de onça-pintada em áreas urbanas em Corumbá, o que pode estar ocorrendo? Poderia comentar sobre o histórico de avistamentos na região, pois esse não é um caso isolado, correto?
Os avistamentos urbanos de onças-pintadas em Corumbá não são eventos isolados, mas refletem processos ecológicos complexos, como alterações de habitat, regime hídrico e a presença de recursos alimentares próximos às áreas urbanas. Há um histórico crescente desses registros, o que tem mobilizado instituições e comunidades locais.
O monitoramento contínuo e a adoção de estratégias de mitigação são essenciais para garantir a segurança das pessoas e seus animais domésticos, ao mesmo tempo em que se preserva a integridade ecológica e a conservação da espécie.
Quando um grande felino aparece em uma cidade, que medidas, segundo a ciência, são as mais adequadas? O ser humano deve ter medo?
O medo é uma reação natural e compreensível, especialmente quando há o risco de contato com um animal silvestre de grande porte. Deve-se manter o respeito e a precaução, com base em informação confiável e ações coordenadas.
Fake news, sensacionalismo e outros exageros vinculados à vida selvagem e aos grandes felinos geram que tipo de impacto nesses casos de avistamento de onças?
É importante entender que o sensacionalismo, as fake news e os exageros na cobertura de avistamentos de onças geram impactos muito sérios, tanto para a segurança das pessoas quanto para a conservação da espécie.
Quando uma informação distorcida é divulgada, isso tende a aumentar o medo coletivo de forma desproporcional, e esse medo pode levar a atitudes impulsivas, como perseguição e até abate ilegal de animais. Além disso, esse tipo de narrativa enfraquece a confiança nas instituições ambientais e nas equipes técnicas que atuam nesses casos.
Muitas vezes, a população passa a acreditar que “ninguém faz nada”, quando, na verdade, existem protocolos, estudos e estratégias em andamento. A onça, que é um símbolo da biodiversidade brasileira, acaba sendo retratada apenas como um perigo, o que dificulta qualquer esforço de educação ambiental, ecoturismo ou coexistência.
Por isso, é fundamental que a comunicação com a sociedade seja feita com responsabilidade, com base em dados científicos, e respeitando os medos legítimos da população. Precisamos combater a desinformação com diálogo, clareza e transparência, para garantir tanto a segurança das pessoas quanto a proteção da fauna silvestre.
Você avalia que o ser humano, de modo geral, pode não estar mais preparado para coexistir com a vida selvagem?
Em contextos em que predadores, como as onças, são percebidos como ameaça à segurança ou ao sustento, estudos apontam que percepções de risco, mais do que o risco real, são determinantes nas atitudes humanas em relação à fauna. Essas percepções são moldadas por cultura, experiências passadas, mídia e ausência de políticas públicas eficazes.
A maioria dos países megadiversos, como o Brasil, ainda carece de políticas nacionais que integrem manejo de conflitos, compensações econômicas, apoio técnico e educação ambiental. Essa ausência favorece soluções reativas, como perseguições e abate ilegal, em vez de abordagens preventivas baseadas na coexistência.
De forma geral, a sociedade contemporânea, especialmente em contextos rurais e urbanos em expansão, ainda não está plenamente preparada para coexistir com a fauna silvestre de forma segura e sustentável.
Essa limitação está menos relacionada à presença dos animais e mais à falta de políticas integradas, conhecimento ecológico aplicado e ações preventivas. Contudo, a ciência oferece caminhos concretos para fortalecer a coexistência entre humano e fauna, por meio do envolvimento comunitário e do uso de estratégias baseadas em evidências.
PERFIL
Diego Francis Passos Viana
Médico-veterinário formado pela UFMS em 2014, mestre em Ciências Ambientais e Sustentabilidade Agropecuária pela UCDB (2021). Atua com mitigação de conflito humano-fauna e coexistência há mais de uma década. Tem a Jaguarte, empresa de consultoria e integra grupos de estudos nacionais e em Mato Grosso do Sul sobre o comportamento de grandes felinos.


