Já diz o ditado popular: “tudo que é bom dura pouco”. É assim com o Carnaval, que tem hoje o último dia de festa. Nesta reta final, já há muitos foliões enfrentando a ressaca, seja física ou moral, e se preparando para a Quarta-Feira de Cinzas e a Quaresma.
Após tanta folia, os dias que seguem representam um bom momento para reflexão. Afinal, qual o verdadeiro sentido do Carnaval? A reportagem do Correio B conversou com historiador, psicanalista e, claro, pessoas comuns de Campo Grande, para entender as motivações por trás da diversão e a sensação de liberdade que aflora neste período do ano.
“Grande parte da população utiliza esses dias de Carnaval exatamente como válvula de escape, para subverter a ordem vigente, fazer coisas que não fariam em outros períodos”, define o historiador Leandro Mendonça Barbosa, autor de um estudo sobre as festas tradicionais do Deus Dionísio, da Grécia, documentadas uma das primeiras festividades da humanidade que celebravam a “alegria” e uma das origens do Carnaval como conhecemos nos dias de hoje.
Extravasar
“Quanto mais o estado ou o poder oficial sufoca, mas a população tem necessidade de ter essas ‘explosões’. Desde a Idade Média, vemos diversas manifestações do tipo. A gente percebe uma necessidade do ser humano de extravasar”, argumenta o historiador.
A psicanalista Isloany Machado defende que os foliões se libertam nos dias de festa por conta da presença de grupos e multidões. “É uma estratégia que se cria para poder fazer coisas que não se fazem no cotidiano”, explica. “Quando se está em grupo, as pessoas se identificam com o grupo e perdem a própria identidade. Por isso, fazem coisas que não fariam caso estivessem sozinhas. É uma forma de fazer o que quer e voltar a ser criança”, avalia a especialista.
Para a estudante de Enfermagem Herica Montenegro, o Carnaval é importante para que as pessoas tenham coragem de quebrar seus próprios tabus. “Há o aval para ‘soltarem a franga’. Algumas pessoas precisam dessa coletividade para entrar em contato com algumas necessidades e vontades, que normalmente são controladas por tabus e regras da sociedade”, opina.
“Acho importante, sim, extravasar, subverter a ordem sempre, mas ainda há muitas questões a serem pensadas, porque o machismo, o racismo e outros problemas estão presentes no Carnaval”, conclui Herica, que cita os casos de assédio moral e sexual contra a mulher, os quais ocorrem nas festas típicas.
Excessos
O historiador Leandro pondera que a festividade atual, com o excesso de bebidas, “pegação” e até brigas, é um Carnaval moderno.
“O Carnaval de hoje se descaracterizou, é fruto da sociedade capitalista. É aquele Carnaval que tem de gerar lucro, tem de vender bebida, abadás. Em vez de fomentar uma banda de marchinhas, se contrata um artista de axé, por exemplo”, pontua.
“Não há nada de errado em beber e fazer farra, mas é preciso conhecer também o Carnaval enquanto tradição histórica”, aponta.
“Originalmente, o Carnaval era mais uma brincadeira. Hoje, temos esse teor mais sexual”, afirma também a psicanalista Isloany.
Leandro, contudo, vê um ressurgimento do Carnaval tradicional com a retomada dos blocos e cordões de Campo Grande.
“Estão resgatando a tradição da festa. E assim, as pessoas ficam mais felizes e os governantes ficam mais felizes [com a valorização do Carnaval da cidade]. Todo mundo sai ganhando”, conclui.
Ressaca moral?
Depois do Carnaval, chega a Quaresma. São quarenta dias em que a Igreja Católica propõe que seja um período de purificação, meditação e reflexão.
A proximidade das datas não é um acaso. Leandro relata que, na Idade Média, reconhecendo que não poderia acabar com a festa, a Igreja Católica e o poder público instituíram a data oficial do Carnaval, antecedendo a Páscoa e caracterizando a Quaresma.
O acadêmico de Psicologia Gabriel Nolasco, 24 anos, reconhece que o “truque” da Igreja funciona até hoje. “O Carnaval possibilita que as pessoas fiquem à vontade, porque nesses dias ‘pode tudo’, e logo depois vem a moralidade religiosa para nos fazer pagar”, reflete Gabriel.
Para Isloany, a sensação de culpa e ressaca moral é uma consequência normal. “Para algumas pessoas, deve bater essa reflexão. Mas depende muito de cada um e do que a pessoa fez. É muito individual. Depende de como a pessoa lida com essa liberdade”.
Leandro destaca que atualmente há uma onda de perseguição no Brasil, que ataca o Carnaval como uma época de imoralidades e libertinagem.
“Todos têm direito de gostar ou não do Carnaval, mas é preciso compreender que é uma tradição que remonta à Antiguidade, que deve ser respeitada como contexto histórico. O Carnaval tem elementos da Igreja Católica, da cultura africana, elementos do comportamento humano. Não é imposição de algum grupo somente. É uma festa que combina diversas crenças, costumes, práticas e tradições. O Carnaval precisa ser compreendido dessa forma”, finaliza.
As origens da folia
De acordo com o historiador Leandro Mendonça Barbosa, o primeiro registro de uma festa que celebrava a “alegria” vem da Antiguidade, por volta do século 6 a.C., na Grécia. Eram as celebrações ao Dionísio, deus do vinho.
Os próximos registros são de Roma, onde se iniciam as festas de “Carnavalia”, que significa celebração da carne.
A festa, que contestava os valores e a ordem vigente, chamou atenção da Igreja Católica e do poder público. Cientes que não poderiam acabar com a tradição, os dois poderes criam a data específica da festa, justamente antes da Páscoa e da Quaresma, o período de reflexão e purificação. A tentativa é, ao menos, controlar as manifestações.
O Carnaval chega ao Brasil por meio dos portugueses. Aqui, a festa se transforma, principalmente, por influência da cultura africana, vinda dos negros escravizados que aqui viviam. Elementos como os batuques e as músicas típicas são introduzidos.
B+: Keila Fuke transforma a dança em escuta do corpo, cura emocional e reinvenção aos 59 anos - Divulgação
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