“Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer documentários”. O slogan do DOC TV, programa de fomento ao documentário criado pelo governo federal em 2004, parece ainda mais atual sob o temeroso panorama de desordem que se acirrou no mundo pós-Covid-19.
E, por feliz paradoxo, cai como uma luva para descrever o estado de ânimo de uma parcela bem representativa da comunidade audiovisual de Campo Grande, especialmente, quem vem se dedicando nos últimos meses ao chamado filme não ficcional.
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Dois cursos on-line realizados na cidade, desde o início do ano, funcionam, ao mesmo tempo, como termômetro e fator de estímulo desse cenário de amplo interesse nas produções audiovisuais de cunho documental.
Interesse em ver, conhecer e aprender a fazer. Prestes a encerrar as atividades com os alunos, o curso MS em Imagens e Sons começou no mês de janeiro e é fruto de uma parceria entre o Museu da Imagem do Som (MIS) e a TV Educativa, com três aulas semanais e atendimento presencial, sob protocolo preventivo, para gravações e edição.
De curta duração, o curso Cinema em Campo – Luzes da Cidade foi organizado pela produtora Pólo Filme, com aulas diárias no período de 19 a 26 de março.
Boom de produções e novos realizadores
Os números surpreendem e apontam para o que pode se tornar, em plena pandemia, uma espécie de boom contemporâneo do documentário sul-mato-grossense.
No total, 94 participantes marcaram presença nos dois cursos e realizaram nada menos que 160 trabalhos audiovisuais, desde exercícios e experimentos rápidos, buscando uma aplicação prática e pessoal do conteúdo trabalhado, a produções com mais tempo de elaboração, pesquisa e manipulação de material – imagens e sons criados, registrados ou resgatados de arquivos domésticos e do baú de instituições, como a TV Educativa.
A feição dos trabalhos varia conforme o perfil e o repertório do aluno, o propósito e a estrutura montada para cada curso, embora ambos tenham mobilizado suas turmas para a realização de histórias vinculadas à sua própria memória pessoal com a Capital Morena e o Estado.
Como a procura extrapolou a fronteira, a demarcação geográfica acabou servindo apenas como ponto de partida, e não limitação.
Além de Campo Grande, Rio Verde de Mato Grosso, Bonito, Corumbá e Rio Negro também tiveram seus representantes no curso do MIS-TVE, que contou ainda com a participação de cinco mulheres indígenas da região de Dourados, totalizando 43 alunos. Mais de 100 pessoas que fizeram a pré-inscrição neste curso ficaram a ver navios.
Mas, afinal, por que tanta gente anda interessada em documentários? “O curso nasceu de uma necessidade de reaproximação e resistência a esse quadro letárgico provocado pela pandemia que nos deprime, já que o cinema é uma arte fraterna em sua essência, que envolve equipe, set, fisicalidade”, conta o documentarista Joel Pizzini, de filmes como o premiado “500 Almas” (2004) e o recente “Zimba”.
“Se há aspectos positivos nessa tragédia que se abateu sobre nós, foi a quebra de um certo padrão de qualidade. O audiovisual, no sentido mais amplo, se humanizou forçosamente, aceitando conteúdos mais ‘imperfeitos’ e, portanto, menos filtrados pelas exigências técnicas do mercado”.
O cineasta foi um dos responsáveis pelas aulas do Cinema em Campo, ao lado do roteirista Ricardo Pieretti Câmara e do diretor de fotografia Maurício Copetti.
“Creio que a experiência, apesar da curta duração, teve uma alta voltagem criativa, com todos os participantes se manifestando por meio de inventos inquietantes”, avalia o cineasta. “Uma imersão interdisciplinar que colocou em discussão conceitos e intercambiou sensibilidades distintas”.
Aldir e Darcy pagam a conta
Ricardo Câmara diz que quando leu o edital da Lei Aldir Blanc (LAB) “na mesma hora” imaginou que seria uma boa oportunidade, ainda mais levando em conta o período de reclusão.
Estava certo na aposta, e o projeto, mediante seleção, ganhou um dos prêmios de R$ 20 mil repassados pela prefeitura a partir dos recursos oriundos da LAB.
No caso do MIS-TVE, a verba destinada à realização da atividade tem, da mesma maneira, origem nos cofres públicos.
Mas não se trata de edital. Em reconhecimento ao curso anterior realizado em parceria com a TV Educativa, MS 40 Anos em Histórias Cinematográficas (2017), o MIS foi contemplado com o prêmio Darcy Ribeiro, do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), e recebeu a quantia de R$ 10 mil, que viabilizou a segunda edição.
Nos encontros do Cinema em Campo, acompanhados por este repórter, o clima de troca e curiosidade mútua prevaleceram sobre qualquer cantilena mais professoral, deixando bem entre aspas o que se entende por aula, professor e aluno.
Um ambiente bem na medida para a proposta do curso, que instigou a autoexpressão. Então, se o trio de professores versava sobre luz e sombra, a jovem artista visual Natália Gassner respondia com um breve e cintilante experimento videográfico, na aula seguinte, que foge do preto e branco indicado na “lição” e explora cores encarnadas e o controle de luz.
Ao mesmo tópico, o videomaker indígena Ismael Morel reage contando, para o encanto geral, uma crença do povo Terena que especula sobre a existência do temido eclipse lunar: para ofuscar a lua, o sol teria jogado nela um punhado de urucum.
Enquanto isso, a curitibana Liz Moraes troca ideias, no privado, com um dos participantes do curso que, ela acaba de descobrir, é doutor em cinema e samba, gênero musical intimamente relacionado ao tema de seu próximo documentário.
Fernanda Guarnian apresenta um curta de ficção-denúncia sobre a violência contra a mulher, que realizou na faculdade, e busca referências para burilar a abordagem no vídeo que está preparando sobre o assunto para o TCC.
O clima de afeto, mobilização e parceria a vicejar em debates acalorados, que põem na mesma pauta uma cena do mestre Buñuel, ícone do surrealismo, e um plano-sequência criado no celular por um aluno do curso, testando efeitos de composição em quadro.
Os mais veteranos, como o encenador Nill Amaral, puxam a sardinha para o teatro e outros campos da expressão.
A diversidade dos grupos é um valor, em si, nas duas turmas, reunindo intelectuais, técnicos e operários. “Temos uma faixa bem ampla de idade, de 18 a 65 anos, e de mecânico a pós-doutor”, relata Carlos Diehl, produtor-executivo da TVE e, com a cineasta Marinete Pinheiro, responsável pelo MS em Imagens e Sons.
“Há uma necessidade de aproximação, e o resultado foi muito bacana, as pessoas conseguiram se expressar e trazer coisas muito íntimas”, afirma Câmara.
“Temos muita preocupação com a profissionalização do setor em Campo Grande e em todo Mato Grosso do Sul. A formação audiovisual também faz parte de nossa missão, principalmente com o perfil do ensaio poético”, pontua o roteirista ao lembrar que a Pólo Filme já promoveu outros cursos, como o que foi oferecido no Festival de Cinema do Vale do Ivinhema.
Carlos Diehl faz coro e vê a oferta simultânea de dois cursos como uma rara oportunidade de aprendizado na área.
“Procuramos oferecer um aprendizado imersivo e profundo dentro do processo real de um documentário, em que o aluno vivencia a produção da mesma forma que vivenciaria se estivesse produzindo um filme, com os mesmos dilemas, problemas, aprendizados e resultado profissional”, afirma o produtor.
“Não oferecemos somente um curso, mas uma vivência na área, e os alunos sabem disso. Por isso vemos que eles estão muito comprometidos, mesmo tendo em vista a pandemia, que impõe um desafio a toda a classe”.
Uma equipe de colaboradores reforçou o curso MIS-TVE, entre eles, o professor Vitor Zan (UFMS), a montadora e colorista Fernanda Gurgel e a produtora Ana Rita Moraes (TVE).
Amigos, amigos, linguagem à parte
“Os dois cursos foram complementares entre si, trazem muito sobre a história do cinema e do audiovisual, além de sugestões importantes do processo de produção”, afirma a bióloga Simone Mamede, 48 anos, que também participou dos dois cursos.
Profissional do turismo sustentável e da educação ambiental, Simone conta que pratica a “fotografia de natureza” como uma forma de documentar a sua pesquisa em biodiversidade.
“Os cursos são uma forma de aprimorar nosso trabalho utilizando a linguagem do audiovisual como ferramenta de sensibilização ambiental e integração entre sociedade e natureza”.
Em sua produção para o MIS-TVE, “A Revolta da Caixa de Sabão em Pó”, a bióloga e agora documentarista aborda o teatro como ferramenta de educação ambiental.
O curso realizará pelo menos cinco outros trabalhos, e todos poderão ser exibidos na TV pública. Música tradicional japonesa, o movimento punk e a cultura dos gibis em Campo Grande, brinquedos afro-brasileiros, a agricultura Guarani-Kaiowá e causos pantaneiros estão entre os temas em linha de produção.
Um cinema novo?
“Está nascendo um novo movimento, uma nova possibilidade cinematográfica”, anima-se o fotógrafo Maurício Copetti, um especialista no registro da temática ambiental, ao recobrar o “incrível” resultado das aulas no mês de março.
Com vasta experiência na captação de imagens, Copetti se associa a projetos independentes e autorais, de parceiros como o próprio Pizzini (Elogio da Graça, 2011), ou a produções internacionais, como Raising Sancho (2008), da britânica BBC.
Ambientalista, desde sempre, por convicção e militância, o fotógrafo também assina a direção de documentários de pegada ecológica, como o visceralmente poético Planuras (2015), ou filmes de investimento formal mais evidente, a exemplo do curta Nanquim (2005), em que a exploração de linguagem se constitui no próprio mote da obra.
O cineasta defende que, enquanto professor, “é preciso ter a responsabilidade de, sobretudo, acelerar processos de conhecimento de linguagem e provocar inquietação para que se saia do quadrado”.
A sua proposta, no entanto, não foi “vou te ensinar isso ou aquilo”. Mas provocar dúvidas, “compartilhar e integrar sempre”, afirma. “Não vejo tanto esse conceito de aluno e professor, me senti muito em casa, como uma troca mesmo, e em vários momentos virei aluno”.
Resta torcer para uma mostra virtual que leve ao público mais amplo, ao menos, uma parte dessa fecunda produção documental que vem mobilizando tanto e ainda pode ser capaz de gerar novos frutos.