Começam a se multiplicar as efemérides do que não pode ser entendido de outra forma senão como um absurdo descaso. Agora já são dois anos, ou quase isso. Na virada do dia 18 para 19 de abril de 2021, o monumento dedicado ao poeta Manoel de Barros (1916-2014) foi depredado e amanheceu, entre outros danos, sem o pé esquerdo.
Sim. Mesmo produzida em cobre, e com toda a sua estrutura – pesando 400 quilos – fixada no chão com concreto, a obra assinada por Ique Woitschach teve o membro amputado e, de lá para cá, assim permaneceu: sem reparos e, não raro, tomada pela sujeira.
As bitucas de cigarro, por exemplo, são recorrentes no “estofado” do sofá que compõe o conjunto, ao lado do pássaro e do caramujo de bronze que convivem com as figueiras de verdade, além da figura do vate e de toda a fauna e flora urbana que deveriam tornar o cantinho do centro do Capital, onde está instalado o monumento, no cruzamento da Avenida Afonso Pena com a Rua Rui Barbosa, um lugar mais acolhedor em meio ao corre-corre da urbe.
Na falta de uma intervenção de ordem prática do poder público, ficam o registro do triste incidente criminoso e as críticas de quem admira o poeta ao mesmo tempo em que atua, de diferentes modos, pela preservação da obra de Barros no dia a dia de suas rotinas de trabalho.
TRISTEZA
“Quando o Ique levou um protótipo para a Dona Stella [Barros, viúva do autor, falecida em dezembro de 2020] aprovar, ou de presente, eu estava na casa. E justamente, quando viu a miniatura do que seria a estátua, ela reparou direto no pé. Ela falou assim: ‘O pé do Manoel é o que eu acho mais parecido com ele nessa escultura. É muito parecido o jeito dele repousar o pé’. Então tem ainda essa simbologia triste, que é tirar aquilo que era uma característica muito forte do poeta”, afirma Ricardo Câmara.
Produtor audiovisual, entre outras atividades que desenvolve no segmento cultural, Câmara é o principal idealizador da Casa-Quintal Manoel de Barros e está à frente da sociedade de amigos responsável pela instituição. Ele lamenta profundamente a falta de providências.
“É uma tristeza ver uma estátua como a do poeta Manoel de Barros danificada. Digo tristeza porque essa estátua foi acolhida muito rapidamente e com muito carinho pelo povo sul-mato-grossense. Foi uma coisa imediata. Quando foi instalada [em 2017], imediatamente se tornou um bem público”, relata o também jornalista.
“As pessoas começaram a visitá-la, a tirar fotos, os turistas começaram a procurá-la. Então, manter essa estátua danificada é também uma falta de inteligência com o turismo, com as questões identitárias do nosso estado. Porque Manoel é, sem dúvida, o maior nome das nossas artes. Não digo nem da nossa literatura, mas das nossas artes. E deixar essa estátua sem um pé é de muito mau gosto, muita falta de consideração”, avalia.
“O novo governo entrou faz pouco tempo. Eu espero que isso seja uma pauta que já esteja sendo discutida e providenciada na secretaria [estadual] de Cultura, Turismo e Cidadania. Inclusive essa estátua atinge todas essas pastas mesmo. E que providencie o mais rápido possível para que seja restaurado e que as pessoas possam novamente ter orgulho desse monumento da cultura sul-mato-grossense”, manifesta-se Câmara.
Indagada pelo Correio do Estado, a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS), que, dentro do organograma da atual Secretaria de Estado de Turismo, Esporte, Cultura e Cidadania (Setescc), é a responsável pelo monumento dedicado ao poeta da terceira geração modernista, anunciou para hoje uma reunião de seu diretor-presidente, Max Freitas, para tratar do assunto. E que “está levantando os custos para que o restauro seja iniciado o mais rápido possível”.
PONTAPÉ DO PODER
Henrique de Medeiros, presidente da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL), diz que o respeito a todos os marcos e monumentos históricos devem ser uma constante das administrações públicas. “É algo triste a gente constatar que uma obra de arte, um monumento da nossa cidade, não é restaurado. O respeito a todos os marcos e monumentos históricos deve ser uma constante das administrações públicas”, comenta o escritor.
“O monumento a Manoel de Barros chama ainda mais atenção por conta de sua localização de alta visibilidade. Foi um ato de vandalismo despropositado, mas mais despropositado ainda é não haver a restauração da obra, que é uma ode à sensibilidade. A ausência de restaurar um simples pé é um verdadeiro falso pontapé dos poderes públicos”, avalia o presidente da ASL, que transformou em poema a sua indignação “pelos dois da depredação e da imobilidade do não-consertar/restaurar um monumento com essa representatividade”.
Barros foi o primeiro ocupante da cadeira número 1 da Academia, nos anos 1970.
LITERATURA PENSANTE
A professora do curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Angela Guida pontua que, “infelizmente”, a agressão à estátua não é um ato restrito a Campo Grande. “Custa-me crer que leitores possam vandalizar monumentos de escritores que leem e conhecem, logo, tais atos revelam falta de apreço e intimidade com a leitura e, por conseguinte, com os autores”, observa a professora.
Angela faz uma breve avaliação para posicionar, no panorama da literatura brasileira, o autor que procurava azuis para encontrar pássaros e, assim, de “ignorãça em ignorãça”, publicou, desde 1937, 30 livros, ganhou prêmios como o Jabuti e o APCA e chegou a ser cotado para o Nobel de Literatura.
“Manoel de Barros é um poeta cuja obra permite a nós leitores várias portas de entrada. Para identificar sua obra, faço uso da mesma classificação que o professor Evando Nascimento fez para falar da obra de Clarice Lispector, ‘uma literatura pensante’, pois não se trata de filosofia no sentido escolástico e disciplinar do termo, mas de textos que estimulam nosso pensamento a cada virar de página, a cada verso lido”, discorre.
“No momento, a poética de Manoel de Barros tem me interessado pela possibilidade de diálogo com a ecocrítica, que, grosso modo falando, é uma proposta de reflexão que se dá na interface entre literatura e questões ecológicas”, completa a professora.
ALDRAVIAS?
“A Casa-Quintal [Manoel de Barros] está indo para a rua interagir com esses passantes, trazendo essa pouca importância para o pé e, sim, a grande importância para o poeta que desenvolve e transforma aqueles que dele se apropriam”, diz Lizandra Moraes, produtora da Casa-Quintal, convocando a população de Campo Grande a tomar parte na intervenção poética programada para hoje, às 10h, no entorno do monumento, para marcar o Dia Nacional do Livro Infantil.
“Serão dois varais de aproximadamente 13 metros que deixaremos para os expositores e o encantamento dos passantes. Neste movimento queremos estimular que levem a poesia para casa e provocar a criança interior de cada um, mesmo que não seja mais despertada pelas crianças [de fato]. Vamos encher os varais das aldravias das crianças”, anuncia Lizandra, que estará acompanhada de escritores no local, além de pedagogos e outros integrantes da Casa-Quintal, para estimular a participação do público.
Confira nesta página o poema de Barros que servirá de mote ao happening. Mas o que são “aldravias”, Lizandra? “Do livrinho ‘AldrAVEando Manoel de Barros em Língua de Ave e de Criança’, a aldravia são seis versos vocabulares. Ela não é uma frase, é um vocábulo em cada linha. Tem que colocar o máximo de poesia com o mínimo de palavras”, explica empolgada a produtora.
Lizandra afirma que “a escolha da data do livro infantil” está relacionada ao investimento na inclusão das crianças. “Buscamos esse diálogo com a sensibilização desse cidadão que existe dentro de uma possibilidade de subverter a realidade em que nós estamos”, aspira Lizandra.
“Uma realidade insensível, bruta, que não está dialogando com o diferente. Quem faz isso? Manoel, e com crianças. E aí veio essa necessidade da provocação artística dentro de um monumento que não é tão valorizado quanto deveria. Esse olhar para as memórias, para as importâncias de Mato Grosso do Sul, e aí também essa provocação de atingir populares, as pessoas que possivelmente não estão sabendo que o poeta tem uma casa-museu”, detalha.
“Te confesso que o tema danificação não era o mote, porém, fiquei sabendo que ocorreu na madrugada do dia 18 para 19. Então, como não questionarmos o poder público?”, responde e pergunta Lizandra Moraes.
Sobre a interface do poeta cuiabano, e campo-grandense por adoção mútua, com o universo e o público infantojuvenil, a professora Angela Guida afirma: “Manoel de Barros, a exemplo de escritores como Mia Couto, Valter Hugo Mãe e Clarice Lispector, produz obras que, mesmo com um rótulo de infantil ou infantojuvenil, colocam seus leitores em constante exercício de pensamento”.
Poesia do não-consertar
a literatura não tem pé nem cabeça
é assim para que pés e cabeças
encontrem caminhos pela vida
nos encontros do pensamento
na cristalização dos azuis dos céus
para as asas do viver
que nos fazem querer voar
mas os corpos dos homens
ainda não tem esse poder
e para levantar voo
precisam caminhar
na falta do pé
poesia deixa de pensar
por não conseguir andar
na coragem do consertar
Henrique Alberto de Medeiros Filho, em poema inédito
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Manoel de Barros, do livro “Exercícios de Ser Criança”,
de 1999


B+: Keila Fuke transforma a dança em escuta do corpo, cura emocional e reinvenção aos 59 anos - Divulgação
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