A década de 1980 marcou o movimento cultural de um Mato Grosso do Sul recém-nascido. Havia muito para se descobrir, construir, mostrar e usufruir e, à frente desse processo, Maria da Glória Sá Rosa nos desafiava com tarefas maravilhosas, como o Pixinguinha, um projeto da Fundação Nacional de Artes (Funarte) que levava para o interior do País o que havia de melhor no cardápio da música popular brasileira. Eu estava na Fundação de Cultura e tive o privilégio de coordenar o Pixinguinha por cinco anos. Devo a esse trabalho muito do que aprendi de produção cultural.
O projeto acontecia no Teatro Glauce Rocha, ao longo de sete semanas, com shows de segunda a sexta-feira. Na turma do elenco jovem estavam Elba Ramalho, A Cor do Som, as meninas do Tom Jobim e um Egberto Gismonti esperando o primeiro filho. Do lado dos veteranos, tínhamos Elza Soares (1930-2022), Carlinhos Lyra (1933-2023), Elizeth Cardoso (1920-1990), Moreira da Silva (1902-2000) e Nana Caymmi (1941-2025). Posso dizer “música de verdade” sem ofender ninguém?
Eu, fã de todos, fazia esforço para cumprir meu ofício sem tietagem. Assim fiz amigos e guardei o privilégio de bastidores triviais, situações às vezes tensas e momentos únicos, muitos deles registrados no meu “Baú da Tia Lê”. Nana Caymmi chegou acompanhada do produtor Fernando Libardi e dos músicos, entre eles o marido Cláudio Nucci, conhecido na época por ser do Boca Livre e ser autor da famosa “Sapato Velho”. Nana 41, ele 27. Nada de estranho, depois que, no mesmo Pixinguinha, convivi com Ângela Maria (1929-2018), de 51, e o marido Daniel, de 19.
Eu fazia de tudo para não perder nada de cada um e marcava ponto nos ensaios, que se transformavam em verdadeiros shows. Era uma delícia ouvir a voz da Nana conversando, dando risada ou bronca em alguém. O timbre que a gente só ouvia nos discos estava à minha disposição. No teatro, perguntava: “Cadê o Cláudio?”. Eu falava: “Está no camarim dos músicos”. E ela dizia: “Com certeza, lá ele está mais à vontade com a turma do barato, né?”.
Ao longo da semana, sempre surgiam convites para jantares e confidenciávamos se valia a pena gastar caras e bocas com prováveis deslumbrados. Mas, quem convidava Nana era porque admirava mesmo sua arte. Aqui em Campo Grande ela ficou à vontade porque reencontrou a grande amiga Idara Duncan, nossa secretária de cultura, que cresceu vizinha dos Caymmi no Rio de Janeiro.
Naquele 1983, o elenco de Nana foi o último. Depois de sete semanas de shows mais os meses que antecederam o circuito, Fernando Libardi me levou pra relaxar na casa dele, no Rio. O cansaço era tanto que perdi os dois primeiros dias dormindo. Acordava, comia e dormia, sem saber se era dia ou se era noite.
Em uma dessas madrugadas, levantei meio cambaleando, descalça e descabelada, fui direto pra geladeira e ouvi a voz inconfundível da Nana Caymmi: “Oi Lenilde, o que você está fazendo aqui?”. Nem deu tempo de pensar que era sonho. Nana estava ali, dando risada por me despertar com a surpresa.
Depois de um abraço bem gostoso, tomei um banho e, pelo resto da semana, acordei para pessoas maravilhosas, conversas pra mais de metro e uma imersão nos bastidores de um Rio de Janeiro que o público que compra ingresso, bate palma e vai embora pra casa não vê. Eu vi.
B+: Keila Fuke transforma a dança em escuta do corpo, cura emocional e reinvenção aos 59 anos - Divulgação
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