Como se dá o seu envolvimento com esse causo guató?
É um causo de formação que conta uma parte da origem da miscigenação entre Brasil e Paraguai, ocorrido na época da Guerra do Paraguai. Ele vem explicar como se iniciaram as influências que carregamos nos dias de hoje de nossos irmãos fronteiriços. Minha relação específica com essa história é que eu tenho grande apreço pela nossa história e nossas influências. Esse causo é muito bonito, pois ressalta a relação de amizade e as coisas boas que absorvemos de outra cultura.
Tive contato com essa história quando Gleycielli a narrou em uma contação de histórias, e isso mexeu muito comigo. Ela é uma potência na oralidade, trazendo essas histórias justamente para tocar em nossas marcas, em nossas origens. Isso se conecta com todos e vai além, aproximando desde nosso chamamé até o tereré que estou tomando enquanto respondo essa pergunta.
Me parece haver uma certa controvérsia se foi ou não um fato verídico.
É uma história verídica pela oralidade de Coxim, como a contadora de histórias repassa em suas apresentações. Mas o causo, assim como as lendas, não tem a função de se apoiar na transmissão da verdade ou dos fatos. Sua intenção é ser uma expressão ampla que explique coisas que não foram e não podem ser documentadas de forma factual. Esse tipo de narrativa constitui a identidade cultural e tem o objetivo de preservar um ensinamento, explicar uma origem ou simplesmente contar uma boa história.
Por que decidiu transformá-lo em uma narrativa de HQ?
Eu já tenho uma experiência com HQs, fiz a preparação de texto, por exemplo, de “Casa Baís”, “Quebra Torto” e “Ausente Ordem das Coisas” [três obras capitaneadas por Fábio Quill]. Além disso, não temos nenhuma HQ que trate sobre a temática indígena no Estado, e fora que esse causo tem umas descrições de imagens tão bonitas. Quando verto elas na imaginação para os desenhos, percebo toda sua potencialidade visual.
Outro ponto é que acreditamos que a HQ alcance um público mais amplo, podendo chegar em mais lugares e, com isso, ser preservada e difundida. Embora a oralidade seja uma arte completa e por si só tenha suas qualidades inegáveis e importância ímpar, é necessário trabalhá-la para que não seja apagada e possa ser acessada. A HQ é uma das formas de preservá-la sem perder suas características essenciais. Não queremos suprimir a oralidade, mas sim incorporá-la com outras linguagens, texto e visual.
Como está sendo a parceria com Fábio Quill e Gleycielli Nonato?
Quill é o meu sócio. Depois de trabalharmos em quatro HQs juntos, decidimos criar a Avuá Edições, que é uma editora independente que acredita e se dedica a publicar autores de MS. Minha parceria com ele é muito rica. Ele é visual, eu sou mais pragmática. Apesar de sermos muito diferentes, na idade, no suporte artístico, somos muito parecidos na forma que vemos o fundo. Ele é muito dedicado a tudo que faz, está sempre buscando fazer o seu melhor, ele me inspira muito. É uma parceria que deu muito certo e continua rendendo muitos frutos.
Com a Gleycielli, tenho menos contato. Trabalhei na produção de alguns festivais, ações e eventos realizados pela Fundação de Cultura [de Mato Grosso do Sul], e em alguns deles ela estava como contadora de histórias ou palestrando sobre literatura indígena, o que me permitiu trabalhar diretamente com ela. Sempre fiquei muito impressionada com sua presença e seu poder criativo. Ela é incrível, e não é à toa que já ganhou vários prêmios, como o Prêmio de Poesia Manoel de Barros. No projeto, teremos a oportunidade de visitá-la algumas vezes em Coxim e estreitar esse laço.
Qual seria o maior desafio e a maior alegria do projeto?
Ainda não iniciamos o projeto, só poderemos dar início após assinar o termo com o Itaú e obter as liberações oficiais necessárias. No entanto, acredito muito neste projeto, por isso o enviei para um edital tão renomado e competitivo. Eu sei da importância que ele tem para nós e o quanto será impactante para o público em geral.
O maior desafio será expressar todo esse sentimento de pertencimento que a história possui. Escolhi esse causo entre tantos porque é visceral, mexe muito conosco e também nos traz felicidade. A maior alegria é poder falar dos povos originários, aprender com eles nossas histórias, perceber sua presença em nossas vidas e mostrar para mais pessoas como é bonito e orgulhoso o lado de cá.
A quem se destina essa HQ?
Ao público de mais de 12 anos, devido às indicações de classificação, mas também ao público em geral, desde pessoas leigas até professores, estudiosos e apreciadores de quadrinhos, para todos. A intenção é justamente ampliar o alcance da obra, e a HQ faz isso com maestria.
O que pretende provocar no público?
Conexão e crítica, porque a Guerra do Paraguai foi um grande divisor entre o Brasil e o Paraguai, gerando inimizade e rejeição entre as comunidades fronteiriças, uma tensão que persiste até os dias de hoje. No entanto, também evidencia que essa relação deixou outras heranças, como música, comida, palavras, entre outras coisas, das quais nos orgulhamos muito.
Ainda existe muito preconceito com os paraguaios por parte dos sul-mato-grossenses. Acredito que voltar às origens é uma forma de resgatar a importância que eles têm para nós em nível pessoal, até mesmo sanguíneo. Rejeitar em detrimento de uma valorização do nosso próprio passado não é nada mais do que um apagamento. Portanto, precisamos contar essas histórias para nos reconectar com nossas raízes e promover uma compreensão mais ampla e inclusiva de nossa identidade cultural.
O que a cultura guató teria a nos ensinar?
O que aprendi ao ouvir Gleycielli contar é que os guató são o povo pantaneiro primordialmente dito. Sempre cuidaram das terras, das águas e da fauna do Pantanal. Eles eram canoeiros, pescadores, cavalgavam e percorriam a região contando suas histórias. Um povo muito criativo, acolhedor e animado. Gleycielli, com seus grafismos pintados no rosto, disse uma vez: “Mulher guató pinta o olho como o olho de onça para se sentir bonita e poderosa”. Acredito que ela transmite muito desse cuidado, proteção ao original, à natureza que o povo guató tem, por isso ela é parte fundamental deste projeto. Penso que podemos aprender com eles a preservar melhor nosso meio ambiente, a natureza e nossas histórias.
O que pensa das questões relacionadas às etnias indígenas em MS?
Assim como a maioria dos estados do Brasil e do mundo, o genocídio dos povos originários é algo presente até hoje. E o genocídio, como diz Abdias Nascimento [1914-2011], não se resume apenas às mortes, é também o apagamento da língua, da cultura e da religião de um povo. Ainda praticamos todos os tipos de genocídios contra os indígenas de Mato Grosso do Sul: casas de reza sendo queimadas, lideranças assassinadas, falta de água em algumas aldeias, e eles seguem na luta pelo mínimo que são seus direitos.
A literatura e o estudo surgem como uma forma de preservar e combater esse apagamento em nível textual. É o que podemos fazer: criticar, ampliar, difundir e expor. É uma utopia achar que podemos mudar o mundo e nossa realidade apenas por meio da sensibilização, mas é um ato de coragem acreditar nisso. Não que a cultura possa resolver todas as questões, mas, pelo menos, pode amenizar um pouco esse apagamento.
Na sua opinião, por que o projeto foi selecionado pelo Rumos?
É difícil pensar, porque são muitas variáveis, especialmente com mais de 3 mil projetos concorrendo. Meu projeto é simples, mas as palavras foram cuidadosamente escolhidas para transmitir a emoção que a cultura e a identidade trazem para cada um envolvido nele. Ele demonstra muita sensibilidade, refletindo como cada pessoa, com sua linguagem, identidade e experiências, pensa sobre o tema e sobre nossa própria origem.
Quando nos orgulhamos de quem somos e de onde viemos ou escolhemos chamar de lar, isso fica muito perceptível e emerge no discurso. A literatura é o trabalho com a linguagem, e ela tem a capacidade de expressar um segundo nível de comunicação, aquele que é sentido. Assim, além da capacidade técnica do proponente e da equipe e de um projeto alinhado com os objetivos do edital, com um cronograma e ações coerentes, o que já não é muito fácil, eu acredito fielmente que o projeto precisa expressar sentimentos, sejam eles quais forem.


