É como se uma gravação desconhecida dos Beatles ou uma “Monalisa” inédita de Da Vinci viesse à tona. Considerado por muito tempo um romance esquecido de Machado de Assis (1839-1908), “Casa Velha” (2023, Via Leitura/Coleção Luso-Brasileira, 80 páginas, R$ 26,90) foi a única narrativa não publicada em forma de livro enquanto o autor era vivo.
Lançada primeiramente como folhetim, em capítulos, entre 1885 e 1886, pela revista carioca A Estação, a obra é considerada um retrato dos traços da primeira fase literária do autor e permaneceu no esquecimento durante décadas até ser resgatada, em 1943, por críticos literários e pesquisadores.
Com uma nova edição integral revisada pelo Via Leitura, selo do Grupo Editorial Edipro, o leitor acompanha, nesta obra, as lembranças de um padre que investiga documentos sobre o Primeiro Reinado na residência de um falecido ministro: ele descobre uma história de amor incestuosa entre o herdeiro Félix e a agregada da casa Lalau e faz um balanço das perdas e ganhos dessa paixão.
“Amor non improbatur [‘o amor não é reprovado’], escreveu o grande Santo Agostinho. A questão para ele, como para mim, é que as criaturas sejam amadas e amem em Deus. Assim, quando desconfiei, por aquele gesto, que esta moça e Félix eram namorados, não os condenei por isso, e para dizer tudo, confesso que tive um grande contentamento”, escreve o autor à página 25 da nova edição.
Ao longo de 10 capítulos, Machado de Assis sugere que há um grande paralelo entre as esferas pública e privada da vida e mostra como um drama familiar pode ser um retrato fidedigno do Brasil do século 19. Embora este título tenha sido publicado postumamente na fase realista do autor, ele ainda apresenta os principais temas abordados no ápice de sua escrita romântica.
“Uma casa tem muitas vezes as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora. Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título”, escreve Machado na apresentação de “Casa Velha”.
A nova chance do romance esquecido de Machado está relacionada à sua indicação para um dos vestibulares mais concorridos do País. Leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp 2024, “Casa Velha” é a sexta obra de Machado de Assis que integra a coleção Biblioteca Luso-Brasileira do Grupo Editorial Edipro.
Além do texto original, esta edição atualizada conta com notas explicativas para os termos e linguagens não usuais, ideais para guiar os estudos dos vestibulandos.
SEMPRE NOTÍCIA
Como todo “clássico eterno”, Machado de Assis sempre é notícia. Vira e mexe, uma nova interpretação de seus escritos célebres, a redescoberta de textos menos conhecidos, como agora acontece com “Casa Velha”, ou mesmo a revelação de coisas inéditas acaba içando o “bruxo do Cosme Velho” para as manchetes.
Por exemplo, para ficar apenas em dois fatos machadianos de peso do ano passado: um conto e o projeto de um romance que veio à baila. O primeiro, “Pai Contra Mãe”, foi lançado em 2022 pela editora Cobogó e fez a crítica reavaliar a pecha de “alheio” à causa antiescravocrata, muitas vezes atribuída a Machado. Na primeira edição de “Casa Velha”, o texto aparece como um dos 12 contos do volume, que reaparece agora com o rótulo de romance (uma vez mais, de 10 capítulos).
“Pai Contra Mãe” faz um duro retrato da sociedade brasileira de sua época, expondo com crueza a escravização, a miséria e a violência vivida por negros e pobres no Brasil. O conto de 1906 desenha a história de sujeitos que vivem na engrenagem da opressão de um sistema capitalista escravocrata, com as violências racial e de gênero que persistem em pleno século 21.
A edição é ilustrada por uma série de pinturas inéditas da artista carioca Márcia Falcão, criadas especialmente para o livro, e conta ainda com um ensaio crítico inédito do professor e pesquisador José Fernando Peixoto de Azevedo e outro da jornalista e escritora Bianca Santana.
O volume traz ainda um texto assinado pelo jornalista Tiago Rogero, criador do projeto Querino, para quem “Machado escancara não só as muitas formas de tortura naturalizadas pela ‘boa gente brasileira’, mas especialmente o fato de que, naqueles tempos – e até hoje –, a pessoa africana ou afrodescendente era – e é – uma cidadã de segunda classe no Brasil. Uma vida que vale menos e que, muitas vezes, não tem nem o direito de nascer”.
Também em 2022, no mês de agosto, correu a notícia da descoberta de um texto inédito de Machado de Assis. O “Indiana Jones” da vez foi o pesquisador Fernando Borsato, em meio às prospecções do curso de doutorado em Literatura Brasileira, na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Hélio de Seixas Guimarães, um dos maiores estudiosos do escritor no País.
O texto de outubro de 1858, quando Machado tinha 19 anos, foi publicado no jornal Correio da Tarde e seria o primeiro de um projeto de livro nunca lançado pelo autor, “A Lanterna de Diógenes”.
FESTA LITERÁRIA
A edição da Festa Literária das Periferias (Flup) deste ano vai ocupar a favela onde nasceu o criador de “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “O Alienista”, o Morro da Providência, localizado na zona central do Rio de Janeiro. Será no dia 13 de maio, com toda a programação gratuita, das 10h às 23h, na Ladeira do Livramento, local exato do nascimento de Machado de Assis.
A Flup é uma festa literária internacional que destaca territórios excluídos de programas literários. No Rio de Janeiro, o evento já passou por Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira, Babilônia e Vidigal. A realização do evento é precedida por um processo formativo que já resultou na publicação de 22 livros de autores de periferias.
Com o tema “Mundo da Palavra, Palavra do Mundo”, a 13ª edição da festa literária faz seu tributo a Machado, fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL), ao lado da homenagem a outros nomes, como o da Mãe Beata de Iemanjá. A mãe de santo desenvolveu diversos trabalhos sociais relacionados ao combate à pobreza, ao racismo e à intolerância religiosa, além de projetos em defesa da educação e da saúde.
Com participação de Haroldo Costa, Leci Brandão e Gilberto Gil, a Flup terá também como homenageado Lima Barreto (1881-1922), jornalista e escritor de romances, contos e crônicas que o tornaram um expoente do naturalismo realista.
“Vamos fazer esta celebração para evocar os pretos e pretas-velhas ancestrais, pedindo licença para incluir Lima e Machado, e festejar também os mais velhos e mais velhas que com sua obra e genialidade continuam hoje a nos ensinar o que é o Brasil”, destaca Julio Ludemir, diretor-fundador da Flup.
MAIS MACHADO
Por último, duas importantes editoras prometeram recentemente mais Machado de Assis nas prateleiras. A Todavia anunciou que vai republicar, integralmente, toda a obra do escritor. E o selo Clássicos Zahar, da Companhia das Letras, divulgou, na semana passada, a inclusão de Machado entre seus próximos lançamentos. Vida longa ao mestre!




