O que as empresas Deloitte, PwC (PricewaterhouseCoopers), KPMG e EY (Ernst & Youg) têm em comum, além de serem às quatro maiores do ramo de serviços profissionais do mundo?
Estas gigantes se interessaram em participar de licitação de R$ 17,1 milhões, aberta em abril pela Prefeitura de Campo Grande, para verificar, entre outras demandas, os bilionários contratos de água e esgoto e de gestão de resíduos sólidos com as empresas Águas Guariroba e Solurb, respectivamente.
As Big Four, como são conhecidas internacionalmente, acabaram desbancadas por uma “prata da casa”, a Deméter Engenharia, líder do Consórcio Pantanal, que se propôs a fazer todo o serviço solicitado pela prefeitura por menos da metade do preço previsto (R$ 8,4 milhões).
A Demeter Engenharia, que levou a melhor no pregão de 29 de junho e já foi habilitada pela comissão de licitação, ainda só não foi contratada porque outra empresa, que está entre as maiores do Brasil no setor de projetos, a Egis Engenharia, interpôs recurso contra sua habilitação.
Águas Guariroba e Solurb
Entre os serviços que a Prefeitura de Campo Grande espera que a empresa a ser contratada faça, estão a verificação independente da gestão do contrato de resíduos sólidos e a verificação do contrato de água e esgoto.
Juntas, estas duas concessões, detidas por Solurb e Águas Guariroba, somam R$ 2,6 bilhões ao longo dos respectivos contratos.
O edital estabelece que a empresa contratada: gerencie projetos; faça análise de estudos e engenharia de valor; estudos de engenharia e arquitetura para montar concessões e parcerias público-privadas; estude a viabilidade econômico-financeira para concessões e parcerias; faça estudos jurídicos para modelagem de concessões; elabore estudos sobre remuneração pela cobrança de serviços; e faça a verificação independente de contratos.
Conforme informado no edital, o valor global do contrato do município com a Águas Guariroba é de R$ 1,3 bilhão; com a Solurb, o contrato é de R$ 1,9 bilhão, cujo valor anual é de R$ 52,1 milhões.
Disputa
No recurso que suspendeu o processo licitatório, a Egis, que está à frente do projeto de revitalização do Centro de São Paulo (SP) e é responsável pelos projetos do metrô Grand Paris Express, na França, e do metrô de Riad, na Arábia Saudita, alega que o consórcio liderado pela Demeter informou no processo de habilitação serviços que não realizou, como a modelagem para a concessão da iluminação pública de Guarulhos (SP).
Como condição para a habilitação, o edital exige que as concorrentes tenham elaborado projetos e modelagens de parcerias de valores superiores a R$ 200 milhões.
A Egis aponta que a Deméter não comprova que seu corpo técnico de fato participou do projeto de Guarulhos.
Em visita ao site da Deméter, hospedado no sistema de sites gratuitos Wix, o Correio do Estado verificou sete serviços realizados pela empresa.
Entre os maiores, estão os planos de coleta seletiva de Campo Grande e de Rio Branco (AC).
O plano de coleta da Capital, diga-se de passagem, custou R$ 464 mil aos cofres públicos. Em 2016, vereadores denunciaram que ele repetia um serviço que já havia sido feito pela Solurb no contrato de 2012.
O Correio do Estado também apurou que a Deméter, administrada por um de seus sócios, Neif Salim Neto, tem um capital social de R$ 660 mil.
Gigantes
As multinacionais que participaram da licitação da prefeitura tiveram o seguinte faturamento em 2019: Deloitte, US$ 46,2 bilhões; PwC, US$ 41,3 bilhões; EY US$ 36,4 bilhões; e KPMG, US$ 29,75 bilhões.
Essas gigantes dos serviços profissionais, além dos serviços de projetos, consultorias e auditorias independentes, também têm aumentado a prestação de serviços de compliance, que é a investigação de práticas ilegais nas corporações.
Às quatro se interessaram pela licitação da Prefeitura de Campo Grande e enviaram vários questionamentos.
A EY chegou a pedir a impugnação do edital antes da abertura do pregão, alegando que o município optou por uma licitação utilizando o sistema de registro de preços para serviços contínuos e específicos e argumentou que tal prática é supostamente ilegal e desaconselhada por órgãos como a Controladoria-Geral da União (CGU).
A Prefeitura de Campo Grande indeferiu o pedido de impugnação do edital.
A mesma EY, em 8 de maio, perguntou ao município se a vencedora do certame, ao ser convocada para ser verificadora independente de um contrato de concessão e descobrir que não tem a independência necessária em relação à concessionária do contrato específico, poderia se recusar a fazer o trabalho sem que houvesse penalidade.
A Prefeitura de Campo Grande respondeu informando que, nesta hipótese, a empresa vencedora estaria impedida de fazer o serviço específico por conflito de interesse, mas que, em relação aos demais serviços previstos no edital (como elaboração de modelagens para parcerias público-privadas), não seria punida.
Em um questionamento, a KPMG alegou que não havia uma justificativa de viabilidade técnica e econômica que fundamentasse a contratação conjunta de serviços distintos de áreas distintas. “A manutenção da licitação da forma prevista não levará a administração pública à contratação mais vantajosa possível”, argumentou.
Como resposta, a prefeitura manteve o edital sem alterá-lo.
PPPs
Além da verificação independente dos contratos de água e esgoto e de limpeza urbana, a empresa contratada também vai fazer a modelagem da parceria público-privada (PPP) de iluminação pública (e a verificação independente do contrato), a avaliação e modelagem do plano de manifestação de interesse (o primeiro caminho para a PPP) de pavimentação, a modelagem de concessão de cemitérios (e a verificação independente do contrato), a modelagem da concessão de terminais de transporte (inclui verificação), a verificação de todo o mobiliário urbano (placas de ruas, relógios ornamentais, lixeiras, bancas de revistas e pontos de ônibus) e a modelagem de estruturação para concessão deste mobiliário.
O processo licitatório foi autorizado por decreto do dia 10 de março de 2020 e atende solicitação da Secretaria Municipal de Governo e Relações Institucionais (Segov), por intermédio da Secretaria Municipal de Gestão (Seges). O Correio do Estado enviou questionamentos ao município, mas não houve resposta até o encerramento da edição.
A Deméter Engenharia também foi procurada, mas os telefonemas aos números que constam no site da empresa (3***-**00 e 9****-**24) não foram atendidos.