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Bastidores Diário de um repórter: imersão em protesto bolsonarista em Campo Grande Os detalhes por trás da reportagem sobre a rotina dos manifestantes do CMO 14 DEZ 2022 • POR Alanis Netto • 18h00
  Alison Silva/Correio do Estado

Na última semana, o jornalista Alison Silva, do Correio do Estado, passou três dias imerso na rotina dos apoiadores de Jair Bolsonaro (PL), que ocupam o entorno do Comando Militar do Oeste (CMO), localizado na Avenida Duque de Caxias, há mais de 40 dias.

Conforme noticiado anteriormente, os manifestantes aguardam por uma intervenção militar, pedido que começou a tomar as ruas após a derrota do presidente em exercício para Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva (PT), no 2º turno das eleições gerais, pleito disputado no dia 30 de outubro deste ano.

Para a reportagem “Diário de um Patriota”, Alison visitou o acampamento montado em frente ao CMO por três dias (de 7 a 9 de dezembro). No texto, ele explica como os manifestantes bolsonaristas estão se organizando para conseguir se manter no local, e como funciona a rotina e a convivência.

“A pauta era mais para identificar realmente essas rotinas, mas, quando eu cheguei lá, eu não imaginei que as coisas seriam dessa. É como se fosse algo recente, mas que, na verdade, já dura quarenta dias”, explicou.

Também existia uma preocupação sobre as condições em que as pessoas estavam vivendo, já que algumas passam a maior parte do dia no local.

“No meu entendimento, a ideia foi muito mais questionar o que eles estão consumindo. Uma pessoa que está imersa a quarenta dias, não dá para saber se ela está indo para casa, se ela está comendo direito, se está tomando banho… Enfim, eu acredito que sim, mas ela muda totalmente a rotina em função daquela atividade, e não se sabe o quanto ela está afetada. Quanto mais você está imerso em uma coisa, mais isso se torna parte de você”, pontuou.
 

Alison Silva/Correio do Estado

Alison optou por não se apresentar como jornalista no local, já que incomodava o fato de outros colegas de profissão já terem sido hostilizados enquanto trabalhavam em manifestações. 

“A partir do momento em que outros colegas - de outros veículos - foram atingidos e mal vistos pela própria manifestação, eu me senti mais confortável em fazer a matéria sem me anunciar, mesmo vendo o próprio jornal do Correio do Estado lá, sendo lido pela galera”, relatou. 

Além disso, ele comentou sobre o receio de estar sendo observado por manifestantes incomodados ou desconfiados pela presença de um novo membro no acampamento.

“Internamente, é assim: você chega e o olhar da galera é de desconfiança, no primeiro dia, principalmente, até pela questão da galera que está ali a muito tempo sentir que você não pertence a aquele espaço. Quando você está lá, você não sabe o que esperar, você não sabe se tem alguém te cuidando, te olhando. Por algum momento, eu achei que tivesse mesmo”. 

Apesar do começo de desconfiança, Alison não teve problemas, e ressaltou que as pessoas foram muito educadas.

“Todo mundo super educado, todo mundo foi super gentil comigo, inclusive os vendedores do entorno, o pessoal foi super receptivo”, concluiu. 

Tarefas

Para conseguir entender melhor o funcionamento do acampamento e a relação entre as pessoas, o jornalista precisou se enturmar, participar das chamadas “dinâmicas”, e ajudar em serviços do acampamento.

“Para mim, foi muito mais fácil conseguir uma resposta nas tarefas diárias. Eu chegava, tentava me enturmar, se eu não conseguisse eu puxava papo com alguém para entender o contexto do dia, qual era o assunto, para aí conseguir desenvolver, conseguir entender as dinâmicas”, comentou.

Foram três dias de convivência e, aos poucos, ele foi sentindo que as pessoas já estavam mais abertas para conversar. Segundo ele, parte dessa estranheza com pessoas novas se deve ao fato de que a maioria das pessoas que estão lá já se conhecem, seja por vínculo empregatício, familiar ou até mesmo pela convivência nos últimos 40 dias. 

“Quando as coisas ficavam difíceis, eu me aproximava das pessoas que eu já tinha tido algum contato antes, no primeiro ou no segundo dia, porque quando você consegue uma aproximação, você consegue se enturmar mais fácil. No geral, todo mundo se conhece, seja por vínculo empregatício ou de sangue mesmo”.

Organização

O que mais chamou a atenção de Alison foi a organização do acampamento, que também é o que explica como as pessoas estão conseguindo ficar no local por tanto tempo.

Alison Silva/Correio do Estado

“Todos os lugares têm nomes, todo mundo tem uma função, existem geradores de energia… Existe uma espécie de ciclo mesmo, uma engrenagem que funciona internamente. Mesmo que ninguém diga nada, todo mundo ali sabe suas tarefas”.

A impressão que ele teve, nos três dias, foi de que o senso de comunidade e a organização confortavam, de alguma forma, as frustrações dos manifestantes, e faziam a chance de uma intervenção parecer mais próxima.

Fake News

Outro ponto notado por Alison - e destacado na matéria publicada anteriormente - foi o poder das notícias falsas e a forma com que elas são usadas para “dar energia” para os manifestantes cumprirem o dia. 

“Parece que as pessoas têm a necessidade de criar uma narrativa, uma história, um contexto, que talvez não seja totalmente verdade, mas que vá circular ali entre as pessoas do CMO, vai ser tido como verdade e se espalhar ao longo do dia. E caso as coisas não aconteçam como eles imaginam, eles já se articulam no fim da noite, para poder gerar alguma outra história para o dia seguinte”, explicou.

Em um dos dias, a fake news que guiou os manifestantes foi a de que Bolsonaro iria pousar dentro do CMO.

“A gente via que, na verdade, a agenda oficial dele dizia que ele estava em Rondônia. Uma pesquisa básica, pequena, já faria o pessoal ver que a chance dele estar ali era bem pequena”, pontuou.

Experiência

Para Alison, viver a reportagem foi uma das maiores experiências dentro do jornalismo, e a expectativa é de que mais matérias imersivas sejam produzidas.  

“Acho que até hoje, dentro do jornalismo, foi uma das maiores matérias que eu fiz. Talvez a gente vá passar a vida escrevendo e não vai conseguir uma matéria que fale ‘pô, essa aqui fui eu quem fiz’, e eu acho que essa matéria, até agora, foi uma das melhores”, ponderou.
 

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