O Instituto 1 Só Coração negou a acusação feita pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), que motivou a abertura de um Inquérito Civil por parte do Ministério Público Estadual (MPE), de que os pais de crianças com indicação de cirurgia cardíaca estariam sendo persuadidos a recusar o serviço oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de enriquecer ilicitamente a rede privada.
À reportagem, a representante do instituto, Gabrielle Montalvão, afirmou que a denúncia feita pela SES não tem fundamento, já que o instituto, que reúne familiares de crianças com cardiopatia, tem como foco apenas lutar por melhores condições de atendimento e assistência a essas crianças.
Montalvão esclareceu ainda que em algumas situações, o SUS não atende às expectativas dos familiares, que querem celeridade no processo, e em outras, há negligência no diagnóstico - o que faz com que casos considerados de urgência sejam tratados pelo serviço público como de menor gravidade.
"O instituto apenas presta auxílio aos familiares de crianças que enfrentaram dificuldades no atendimento e pedem outra possibilidade de tratamento. Mais de 90% das crianças que chegam para nós já passaram do tempo de fazer a cirurgia", revelou Montalvão.
Um dos casos mencionados pela representante do instituto foi de uma criança de 11 anos, que aguardava por uma cirurgia a qual deveria ter sido submetida aos 6 anos de idade. Devido ao atraso, agora ela só poderá ser curada por um transplante.
Em entrevista ao Correio do Estado, a mãe da criança - que receberá o nome fictício "Marta" neste material -, contou um pouco sobre a experiência vivida com a filha, desde o diagnóstico até a descoberta da necessidade do transplante.
Marta descobriu que a criança tinha ventrículo único e vasos mal posicionados no coração durante o sétimo mês de gestação. Após o parto, a recém nascida precisou ficar 18 dias internada na Unidade de Terapia Intensiva neonatal da Santa Casa de Campo Grande, até a medicação ser ajustada.
Inicialmente, os especialistas diziam que e menina precisaria fazer três cirurgias. A primeira, chamada Bandagem, foi realizada quando ela tinha apenas 8 meses de vida, e a segunda, chamada Glen, foi feita quando ela tinha 2 anos e 9 meses.
"Mas depois das cirurgias começou meu pesadelo. Minha filha sempre foi nas consultas, nunca faltei. As médicas falavam que ela precisaria de três cirurgias no total, mas ela só fez duas. Depois, internamos seis vezes na Santa Casa, e nos mandaram embora em todas elas. Sempre chegava alguem mais grave para 'passar na frente', ou o leito da UTI não tinha vaga", relatou Marta.
Mais recente, a menina, que atualmente tem 11 anos, começou a apresentar sinais de cansaço que foram avaliados pela mãe como incomuns, por isso, a especialista que acompanha o caso foi procurada.
"A médica disse que estava 'tudo bem', e que minha filha poderia esperar a cirurgia. Fui atrás de uma segunda opinião, e aí meu mundo caiu", desabafou a mãe.
Em setembro deste ano, Marta procurou por um hospital referência em cardiologia no estado de São Paulo, que constatou que todas as cirurgias as quais a menina havia sido submetida foram feitas com atraso, e o Fontan, o terceiro procedimento que ela aguardava para fazer, era recomendado para pacientes com até no máximo 5 anos de idade, ou seja, a cirurgia estava atrasada em, no mínimo, 6 anos.
"Lá em São Paulo fiz vários exames que fizeram os médicos chegarem a essa conclusão, exames que nunca foram realizados aqui, nem pelo SUS e nem que tenham pedido para eu fazer particular. Ficamos 19 dias internadas, realizando os exames e trocando a medicação", detalhou.
A única saída apresentada pelos especialistas foi um transplante de coração.
"A função do coração da minha filha não está boa, e ela vai precisar entrar na fila para o transplante com 11 anos de idade, tudo isso devido a demora em fazer a cirurgia dela", disse a mãe.
Marta acrescenta que procurou pela Defensoria Pública para pedir auxílio para que a filha recebesse tratamento fora do estado, pedido esse que foi negado.
A Santa Casa disse que internaria a menina para realizar a cirurgia de Fontan, mas um dos critérios para a entrada no centro cirúrgico era a função do coração estar boa, o que não é o caso da filha de Marta.
Apesar da preocupação e da necessidade de mudar os medicamentos, o quadro da menina é estável no momento.
Além de Marta, Gabrielle Montalvão citou diversas outras mães que também enfrentaram dificuldades ao utilizar o Sistema Único de Saúde. Em dois dos casos recentes mencionados pela representante do instituto, crianças morreram na espera pela cirurgia. Em outro, a cirurgia foi feita, mas o bebê veio a óbito por falta de assistência no pós-operatório.
"Ter nossa imagem vinculada pela Secretaria de Estado à fake news é muito triste. Nossa luta nunca será contra pessoas específicas, mas sim por uma condição melhor", disse Montalvão, lembrando o inquérito aberto pelo MPE.
Ela reforça que o ideal realmente seria que as famílias fossem assistidas pelo SUS, na Santa Casa de Campo Grande, mas que, em alguns casos, não é uma possibilidade.
"Nossas crianças têm sim chance de vida, e nós precisamos melhorar essa assistência dentro do Estado. Anualmente nascem mais de 300 crianças com cardiopatia, que necessitam de cirurgia. Precisamos de mais profissionais", acrescentou.
Para embasar o argumento, Gabrielle apresentou dados de um estudo conduzido pelo o pelo Ministério da Saúde e pelo Hospital do Coração (HCOR), que revelou que apenas no ano de 2018, em Mato Grosso do Sul, aproximadamente 480 crianças nasceram com cardiopatias congênitas, dentre elas, 330 precisavam de cirurgia pelo SUS. O levantamento mostra ainda que a produção cirúrgica da Santa Casa, o único hospital de referência no estado, foi de 138 procedimentos, atendendo 42% da demanda.
Um outro estudo, publicado na Revista Epidemiológica Brasileira, mostrou que, no estado do Mato Grosso do Sul, a mortalidade por malformações congênitas foi maior que a mortalidade por prematuridade em 2020.
"Considerando que a cardiopatia congênita é o tipo de malformação que mais leva neonatos ao óbito, é crucial que as políticas de saúde pública foquem na detecção precoce e no tratamento adequado dessas condições", defende o instituto.
Gabrielle disse à reportagem que já foram feitas diversas reuniões com as autoridades de saúde para pedir por melhorias no atendimento, acompanhamento e tratamendo dessas crianças, mas que o serviço oferecido ainda está longe do ideal.
"Nós iremos tentar contato com eles o mais cedo possível, não podemos aceitar que eles nos vejam como uma ameaça quando claramente nós não temos culpa da alta mortalidade e da baixa produção cirurgia do hospital em questão", concluiu Gabrielle.
A Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande (Sesau), órgão que recebeu as mães recentemente para mais um diálogo, foi procurada e questionada sobre a quantidade de pacientes que aguardam em filas por cirurgias de cardiopatia, e quais fatores fazem com que os procedimentos levem tanto tempo para serem realizados. No entanto, não houve resposta até o momento de publicação deste material. O espaço segue aberto para posicionamento.
Inquérito do MPE
O Ministério Público Estadual (MPE) instaurou inquérito civil para apurar a regularidade do serviço de cirurgia cardíaca prestado pela Associação Beneficente de Campo Grande (ABCG), mantenedora do Hospital Santa Casa de Campo Grande, e a possibilidade de um grupo estar convencendo fanílias das crianças que necessitam da cirurgia a não utilizarem o serviço público habilitado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Conforme consta no documento, a Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso do Sul (SES) acionou o MPE apontando que advogados, médicos e membros do Instituto 1 Só Coração estariam persuadindo os responsáveis pelas crianças com indicação de cirurgia cardíaca a recusarem o serviço público, descredibilizando o servço oferecido pelo SUS, com o objetivo de alcançar enriquecimento ilícito.
Tal fato veio à tona porque o Estado tem estranhado a quantidade de demandas judiciais para arcar com custos financeiros exorbitantes de cirurgias cardíacas pediátricas feitas fora da rede referenciada do SUS. A estranheza se deve ao fato de que o serviço demandado é oferecido pela rede pública na Santa Casa da Capital, que é considerado referência no procedimento.
Ou seja, mesmo com a qualidade comprovada do serviço e a cobertura do SUS, constantemente são ajuizadas ações de pacientes que não se submetem ao procedimento no hospital.
A pasta considerou que os advogados "estão a denegrir o serviço referenciado do SUS com judicialização de demandas contra o Estado de alto valor financeiro fora da rede referenciada do SUS".
Para a SES, incentivar as famílias a buscarem pelo tratamento na rede privada com a descredibilização do serviço oferecido pelo SUS pode se tratar do caso de uma disseminação de informações falsas e tendenciosas, as chamadas fake news, e elas estariam "afetando diretamente as finanças públicas do Estado de Mato Grosso do Sul e dos Municípios".
"Considerando que, por tudo que dos autos citados contam, a imagem do serviço de cirurgia cardíaca pediátrica da Santa Casa está sendo denegrida sem qualquer comprovação e, por conseguinte, o Estado de Mato Grosso do Sul está sendo demandado judicialmente para que arque com os custos financeiros exorbitantes de cirurgias cardíacas pediátricas fora da rede referenciada do SUS, servimos da presente para solicitar averiguação deste Ministério Público quanto ao fato ora apresentado", finaliza a SES.
A instauração do Inquérito Civil foi publicada no Diário Oficial do Ministério Público de Mato Grosso do Sul (DOMP) desta terça-feira (29).