“O aborto já é livre no Brasil. É só ter dinheiro para fazer em condições até razoáveis. Todo o resto é falsidade. Todo o resto é hipocrisia.” Dráuzio Varella (médico oncologista).
Não obstante a afirmação do conhecido médico, a Câmara de Deputados aprovou o regime de urgência ao Projeto de Lei 1.904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL- RJ), que equipara o aborto ao homicídio simples quando a gestação for interrompida a partir da 22ª semana, inclusive em casos de estupro.
O primeiro ponto que chama a atenção diz respeito ao regime de urgência previsto no artigo 153 do Regimento Interno da Câmara.
Não há aparentemente nada que justifique a tramitação em regime de urgência a não ser a nítida intenção de acelerar o projeto, contra o processo democrático de discussão de questões de interesse nacional da sociedade no Congresso e, diminuir, portanto, a qualidade do debate público sobre a matéria.
Não resta a menor dúvida que o Poder Legislativo tem ampla competência para discutir todas as matérias que envolvam sua atribuição e isso é um espaço sagrado conferido a ele pela Constituição brasileira.
Mas será realmente que o que move o Legislativo é o interesse público e social? Ou simplesmente a vontade de se contrapor por exemplo ao Supremo Tribunal Federal, que está em vias de julgar a constitucionalidade de uma resolução do Conselho Federal de Medicina que proíbe uma prática médica abortiva, mesmo nos casos de aborto legal.
Registre-se que atualmente não há no Código Penal um prazo máximo para o aborto legal. Com exceção dos casos em que não há punição, a lei prevê detenção de um a três anos para a mulher que faz aborto. Caso o projeto seja aprovado pelos parlamentares, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos. Já para o crime de estupro, o artigo 213 do Código Penal prevê a pena máxima para o agressor de dez anos.
Ou seja, a mulher vítima de estupro será penalizada com o dobro da pena que seu estuprador em um livre exercício de raciocínio. Isso seria razoável ou proporcional? Parece-nos que não.
A tendência mundial vai em outra direção.
De outro lado, o Poder Legislativo precisa se conscientizar que pode sim superar as decisões do Supremo Tribunal Federal, seja por intermédio de emendas constitucionais, seja por intermédio de uma série de diálogos possíveis, mas esse processo deve ser maduro e não por meio de represálias infantis.
Infelizmente, a hipótese da qual se parte é que as interações entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário no Brasil em matéria de controle de constitucionalidade e aprovação de emendas à Constituição se caracteriza como uma sobreposição de monólogos, em que cada um dos personagens tenta fazer prevalecer sua posição sem grandes tentativas de incorporar as contribuições de seu interlocutor, do que propriamente como um autêntico diálogo institucional.