Artigos e Opinião

ARTIGO

Rivaldo Venâncio: "Dengue, zika e chikungunya: a tríplice epidemia"

Médico infectologista, pesquisador da Fiocruz e professor da UFMS

Redação

30/12/2015 - 00h00
Continue lendo...

No fim de 1985, o Rio de Janeiro foi surpreendido por uma doença caracterizada por febre de início agudo e dores generalizadas. Meses depois, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz identificaram o agente causador: o vírus dengue, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. Desde então, a dengue é registrada em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal, sendo parte de nosso cotidiano. A partir de outubro de 2013, América Central e Caribe passaram a conviver com epidemias de chikungunya – outro vírus transmitido pelos mosquitos Aedes. 

Daquele momento até novembro de 2015, foram notificados perto de dois milhões de casos da doença, que se alastrou por mais de 40 países das Américas. No Brasil, o vírus chikungunya (CHIKV) foi identificado em 2014 e acometeu milhares de pessoas.

Como a dengue, a infecção pelo CHIKV causa febre alta de início agudo, dores fortes em músculos e articulações (principalmente tornozelos, punhos e mãos) e na cabeça. No entanto, o CHIKV provoca, além da dor, inflamação nas articulações, o que não acontece com a dengue; as dores podem ser tão intensas a ponto de impedir o doente de realizar atividades rotineiras, como tomar banho sozinho, vestir-se ou pentear os cabelos. Além dessa diferença entre as doenças, a chikungunya com relativa frequência se torna crônica, fato inexistente na dengue. 

Desde fins de 2014, convivemos com outra doença, causada pelo vírus zika, do mesmo gênero e família do vírus da dengue, também transmitido pelos mosquitos Aedes. As manifestações clínicas da zika eram consideradas “benignas”, com febre baixa (nem sempre presente), vermelhidão pelo corpo e coceiras e dores articulares (em mãos, punhos e tornozelos), por vezes acompanhadas por edemas. 

Porém, investigações epidemiológicas e clínicas sugeriram a associação temporal de relatos de infecção pelo vírus zika, durante os primeiros meses de gestação, com alterações congênitas de recém-nascidos. 

Descoberto em 1947, esse vírus foi identificado como causador de surtos em diversos países e territórios da África, do Sudeste Asiático e em ilhas do Oceano Pacífico, regiões com populações pequenas ou precários sistemas de vigilância, o que pode ter contribuído para que manifestações graves, como aquelas envolvendo o sistema nervoso central, não tenham sido detectadas anteriormente. 

A epidemia iniciada no fim de 2014, na Região Nordeste, representa, portanto, a primeira grande circulação do vírus em localidades com milhões de habitantes. Entre outras hipóteses para explicar as manifestações neurológicas e congênitas, estão a ocorrência simultânea de outros vírus e uma mutação genética do zika que circula no Brasil.

A constatação de uma epidemia de microcefalia na Região Nordeste fez com que o Ministério da Saúde, numa decisão corretíssima e corajosa, declarasse “Situação de Emergência em Saúde Pública de Interesse Nacional”. 

Posteriormente, foi detectado o genoma viral em líquido amniótico obtido de duas gestantes, cujos fetos tiveram diagnóstico de microcefalia, e a presença do vírus em amostras de sangue e tecidos de uma criança nascida com essa e outras más-formações congênitas. A comprovação do vírus zika como causador de alterações em bebês representa um achado inédito na pesquisa científica mundial. Até o fim de 2015, poderemos ter cerca de três mil e duzentos casos suspeitos de microcefalia notificados no Brasil, números que poderão totalizar aproximadamente quinze mil até o fim de 2016. Por outro lado, é bem possível que estejamos diante de uma epidemia de zika congênita, sendo a microcefalia uma das más-formações, mas não a única. 

A situação atual é de extrema gravidade. Essa epidemia de más-formações congênitas em razão da infecção pelo vírus zika poderá se transformar em verdadeira tragédia sanitária, provocando sofrimento superado apenas pela pandemia de HIV/Aids. 

A epidemia de zika, que está ocorrendo no Nordeste, possivelmente atingirá os demais estados do País e, em decorrência da infecção em gestantes, um aumento no número de crianças com microcefalia e outras más-formações congênitas. É possível que, neste verão que se inicia, o Brasil venha a conviver com essas três doenças de forma intensa, uma vez que temos os mosquitos Aedes em abundância, em milhares de municípios. 

Além de profissionais capacitados para o atendimento aos doentes, essa tríplice epidemia – dengue, zika e chikungunya – exigirá competência na organização da rede multidisciplinar de atenção aos doentes, compromisso dos gestores da saúde e participação de todos os segmentos da sociedade civil organizada, governamental e não governamental, pública e privada.

ARTIGOS

O que tem para dizer o MPF?

19/11/2024 07h45

Arquivo

Continue Lendo...

O que há de ser entendido no silêncio que o Ministério Público Federal (MPF) adotou – quando se calou e se mantém calado – diante da solução que os governos federal e estadual encontraram para pôr fim ao caso da Terra Indígena (TI) Ñande Ru Marangatu, em Mato Grosso do Sul?

Como é sabido, a questão abarcava conflitos violentos que vinham acontecendo há décadas entre indígenas e não indígenas. Esses conflitos foram desencadeados a partir da instrução do processo administrativo em que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) demarcou – pela ocupação indígena em passado remoto que ela mesmo declarou – um território inteiro de terras particulares em Antônio João, até então, integralmente ocupado, possuído e explorado há quase um século por seus respectivos proprietários. 

O que amparava esses conflitos era a teoria do indigenato, de 1912, do ministro João Mendes, que pela ocupação indígena em passado remoto identificou a TI Ñande Ru Marangatu. Essa forma de identificação de terra indígena tem sido a causa das incontáveis invasões indígenas às terras particulares que ocorreram e que ocorrem todos os dias em MS e em muitas regiões do território nacional.

Lado outro, a Comissão Especial de Autocomposição do Supremo Tribunal Federal (STF) homologou o acordo, o que leva concluir que a mais alta Corte de Justiça concorda com esse modus operandi de se identificar terras indígenas e o adota, como se tanto fosse possível, na solução das causas que julga envolvendo matéria indígena. O exemplo mais recente envolve o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC.

Aliás, a Corte faz confusão quando identifica terras indígenas. Ora adota a teoria do indigenato, ora adota a sua própria interpretação, proclamada na assertiva de que a “configuração de terras ‘tradicionalmente ocupadas’ pelos índios já foi pacificada com a edição da Súmula nº 650, que dispõe: ‘Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto’”.

Notadamente, o STF relativizou ainda mais o direito de propriedade constitucional diante da matéria indígena, proclamando que, uma vez constatada a ocupação indígena em passado remoto, não há que se invocar o direito de propriedade, o título translativo nem a cadeia sucessória do domínio como defesa. Em resumo, o posicionamento extremo do Supremo é de que a ocupação indígena – seja ela presente, seja ela em passado remoto (indigenato) – define a terra indígena da União. 

A seu turno, por que o MPF – ferrenho defensor dessa ordem jurídica – deixou que os governos federal e estadual pagassem aos particulares pelas terras indígenas que ocupavam e exploravam no distrito de Campestre, em Antônio João? Com a palavra, o MPF em Mato Grosso do Sul!

Assine o Correio do Estado

ARTIGOS

A resiliência e a fé

19/11/2024 07h30

Arquivo

Continue Lendo...

Os desafios diários enfrentados por quem atua na proteção da natureza têm se tornado uma enorme prova de resistência e fé. As condições climáticas extremas, impulsionadas pelas altas temperaturas, ameaçam nossas reservas com o fogo e penalizam a fauna e a flora – já impactadas pela reincidência de incêndios violentos desde 2020.

Percebo que a fauna enfrenta o pior processo de extinção desde o período em que conseguimos a vitória no controle da caça, do tráfico de animais silvestres e da pesca predatória na década de 1980. O cenário atual é de destruição de habitat natural, em que espécies estão sendo dizimadas de forma assustadora, especialmente répteis e insetos. As chamas estão tão intensas que, somadas aos ventos fortes, invadem todos os lugares: locas, copas das árvores, etc, persistindo por meses de forma impiedosa.

Não há dúvidas de que estamos perdendo essa batalha. Somente neste ano já ultrapassamos os 3 milhões de hectares queimados. Esse trágico número foi alcançado mesmo com o empenho de recursos financeiros nas ações de combate, que certamente superam R$ 1 bilhão – entre os investimentos dos governos federal e estadual.

Nunca tivemos – em um histórico de 40 anos – uma infraestrutura de combate tão ampla, incluindo recursos humanos, equipamentos de logística, helicópteros, caminhões e embarcações. É importante destacar o trabalho pioneiro da Famasul, que contabiliza os prejuízos na produção das fazendas no Pantanal, já ultrapassando R$ 50 milhões.

Como podemos ser mais eficientes se nossa capacidade financeira já extrapola seus limites dos desafios e a força humana se mostra insuficiente, em algumas situações até incapaz? Estamos enfrentando algo sem precedentes e que excede nossa capacidade de resposta.

Não devemos nos omitir na identificação dos responsáveis. Eles existem, embora sejam poucos. Ainda assim, acredito que não haverá melhoras significativas na questão comportamental apenas com multas milionárias e possíveis prisões. 

A experiência de outros países, como Portugal e Austrália, nos indica que o ímpeto punitivo não traz uma solução completa. Esses países já lidam com incêndios gigantescos e perdas de vidas humanas em virtude deles há mais de 20 anos.

O mais impressionante – e certamente mais doloroso que as próprias chamas – são as acusações equivocadas e a ignorância de alguns que associam o crescimento dos incêndios às reservas de proteção. Ao contrário, as poucas áreas protegidas no Pantanal (menos de 5%) têm estruturas para evitar incêndios e ações preventivas em seus planos de trabalho, como a presença de brigadas.

Podemos reduzir a escalada dos incêndios ano após ano se implementarmos outras estratégias que não se restrinjam ao combate ao fogo, mas que incluam 
a prevenção. Devemos reconhecer que nossos planos atuais não estão trazendo os resultados esperados e que não será somente o aumento dos investimentos financeiros que nos trará a solução.

O ponto crítico é como um dos biomas mais preservados (cerca de 85%) passou a ser um grande emissor de gás carbônico no País. Os fenômenos naturais são impactados negativamente pelas condições climáticas extremas. Essa situação ameaça nosso bioma e exige novas estratégias que unam ciência e competência para enfrentar esses fenômenos sem precedentes.

Restaurar ao proprietário formas de manejo do fogo pode ser uma alternativa. Eles podem ajudar. Ao mesmo tempo, com mais tecnologia e grupos de ação de combate ao fogo, equipados com boa logística e equipamentos adequados, podemos reduzir o tempo de resposta. Não podemos desistir e precisamos ter fé e resistência para rever nossa relação com o planeta.

Poderíamos, em um gesto responsável, olhar e fazer algo pela nascente do Rio Paraguai. Não sou pessimista, mas talvez apenas a desesperança e o senso de urgência possam nos salvar.

Assine o Correio do Estado

NEWSLETTER

Fique sempre bem informado com as notícias mais importantes do MS, do Brasil e do mundo.

Fique Ligado

Para evitar que a nossa resposta seja recebida como SPAM, adicione endereço de

e-mail [email protected] na lista de remetentes confiáveis do seu e-mail (whitelist).