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Salvadores da pátria e estado espetáculo

Quem negocia sabe que vitórias sem concessões são impossíveis e, portanto, faz acordos para realizar ao menos parte de seus interesses

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A legitimação ainda comum nas sociedades ocidentais para a prática política, por meio de sua realização em formas de democracia parlamentar, surgiu no fim do século 23, sob a dupla influência de uma nova concepção de tempo em movimento.

Enquanto, desde a Idade Média, diferentes tipos de governo fundamentavam suas pretensões de poder em olhares para o passado, apresentando-se como continuidade de tradições longas e estáveis, os pensadores do Iluminismo descreveram a democracia como uma visão de futuro promissor.

Assim que as revoluções burguesas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França concretizaram essa promessa e a transformaram em realidade estabelecida, a temporalidade movida por visões começou a animar o cotidiano da política em outro nível, mais concreto.

As disputas decorriam de concepções concorrentes sobre o futuro, e tais imagens de sociedades melhores se tornaram, em um espectro ainda presente em nossa época, os meios de unificação das primeiras partes políticas. 

Chamamos de tempo histórico esse enquadramento que, depois de 1750, orientou pensamento e comportamento para objetivos sem os quais a política, como a entendemos, não teria surgido. Diferentemente do primado da duração até então vigente, pressupunha-se que o tempo funcionava como impulso inevitável de transformação constante, deslocando assim as relações entre futuro, passado e presente.

De repente, a atenção do agir se voltou da tradição passada para o futuro como horizonte aberto, moldável segundo as visões humanas. Ao mesmo tempo, a autoridade absoluta do passado se enfraquecia à medida que aumentava seu distanciamento cronológico da atualidade.

Entre esse passado relegado ao fundo e aquele futuro dinâmico, o presente, antes associado ao lapso de uma geração, estreitou-se, segundo Charles Baudelaire, a “um instante imperceptível de transição”, no qual o espírito humano formava suas motivações.

Cientistas como Michel Foucault e Reinhart Koselleck mostraram como a emergência do tempo histórico não apenas moldou nosso conceito de história, mas foi compreendida também como parte da própria história – um fenômeno histórico.

Contudo, por causa da sua influência abrangente sobre o espírito prático e filosófico dos dois últimos séculos, foi e continua sendo difícil não confundir o tempo histórico com o tempo em si, e imaginar outras formas de temporalidade.

As cosmovisões do socialismo e do capitalismo, dominantes a partir do século 19, basearam-se de maneira semelhante em visões e, portanto, em tempo em movimento: o socialismo, levado ao comunismo, no ideal de uma sociedade sem classes; o capitalismo, na expansão de um crescimento econômico constantemente acelerado.

Em reação a essas expectativas abstratas de progresso garantido, formou-se durante o Romantismo o conceito moderno de nação. Memórias da grandeza perdida de cada povo deveriam suscitar sentimentos concretos de unidade e neutralizar visões de futuro.

Como contraponto ao socialismo e ao capitalismo do início do século 20, as ideologias fascistas prometeram a salvação das nações por meio de um retorno a sua suposta grandeza original. Ainda assim, mesmo elas se baseavam em uma temporalidade em movimento entre passado e futuro.

Somente no fim do século 20 – e amplamente despercebido por intelectuais – ocorreu o fim da hegemonia e a substituição do tempo histórico. O cientista político Francis Fukuyama ganhou notoriedade em 1990 com sua tese do fim da história como cumprimento do tempo histórico no triunfo da democracia parlamentar sobre o socialismo estatal.

Mas tentativas de descrever a nova forma de temporalidade que substituiu o tempo histórico permaneceram surpreendentemente raras. Hoje, é evidente que um futuro de perigos inevitáveis – por exemplo, na forma de catástrofes ambientais projetadas – substituiu o futuro inspirado em visões.

O passado, em vez de perder relevância com o distanciamento cronológico, inunda o presente com a memória eletronicamente expandida de formas de vida de sociedades anteriores, oferecendo-as como possibilidades atuais.

Cercado por esse passado transbordante e por esse futuro bloqueado, o presente deixa de ser um instante breve e orientado a metas, transformando-se numa zona ampla e esmagadoramente complexa de opções concorrentes de existência humana.

Essa nova temporalidade surgiu sem programas ou intenções, o que explica por que ainda pouco entrou no consciente coletivo, embora nosso comportamento já a siga.

Os discursos políticos explícitos continuam a colocar em primeiro plano o futuro aberto ocupado por visões, do qual a democracia parlamentar depende estruturalmente por seu ritual de eleições recorrentes e pelo próprio entendimento dos partidos. 

Atualmente, uma prática baseada em negociar vem preenchendo o espaço deixado pelas visões. Negociar entre pessoas ou grupos se tornou inevitável porque a complexidade de comportamentos simultâneos e seus potenciais conflitos, na ampla atualidade, já não é compensada por uma narrativa de progresso contínuo.

Quem negocia sabe que vitórias sem concessões são impossíveis e, portanto, faz acordos para realizar ao menos parte de seus interesses. Na próxima negociação, dificilmente se sentirá vinculado a posições anteriores, pois negociar é, essencialmente, administrar a complexidade caso a caso.

Os partidos, desde a origem atrelados a visões, raramente oferecem a flexibilidade necessária e, por isso, transformam-se cada vez mais em peças de coalizões de curto prazo. Em outras palavras: no paradigma da negociação, os partidos perderam coerência ideológica e ganharam competência estratégica.

Mesmo a União Europeia, originada de uma visão clássica, hoje se move principalmente em negociações bilaterais entre nações, sem reivindicações de identidade histórica.

Não é por acaso que Donald Trump gosta de se apresentar como mestre global da negociação. Independentemente das avaliações sobre sua habilidade, a intensidade da fascinação que desperta confirma que vivemos numa era da negociação.

Talvez ainda mais do que Trump, o presidente argentino Javier Milei, frequentemente criticado por intelectuais, encarna esse estilo político pouco definido.

Manter o futuro livre de programas e visões é seu único ponto programático; em negociações oficiais e preferências pessoais, insiste na rejeição de princípios de coerência; venceu as eleições à presidência apoiado por uma coalizão frágil, alternativa aos partidos tradicionais; e planeja retirar a Argentina de compromissos transnacionais sem buscar orientação na história nacional.

Milei recusa ser identificado como representante de qualquer tipo de política – e provavelmente não conseguirá permanecer além dos quatro anos constitucionais.

Ambos os aspectos sugerem que negociar se tornou prática central da política contemporânea, embora não se encaixe bem nas instituições existentes. Devemos nos esforçar para compreender melhor essa forma e seus contextos.

EDITORIAL

As bolhas que nos afastam da realidade

Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis

17/12/2025 07h15

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A expressão “estar em uma bolha” deixou de ser apenas uma gíria de internet para se transformar em um retrato cada vez mais fiel da forma como a sociedade vem se organizando. Nas redes sociais, algoritmos direcionam conteúdos, opiniões e notícias de acordo com preferências previamente identificadas.

O resultado é um ambiente confortável em que quase tudo confirma aquilo que o indivíduo já pensa. Divergir passa a ser exceção e confrontar ideias, um incômodo evitado.

Fora do ambiente digital, a lógica das bolhas também se impõe. O isolamento crescente em condomínios fechados, verticais ou horizontais, reduz o contato cotidiano com o diferente. Ao limitar o convívio, o indivíduo perde a oportunidade de compreender realidades distintas da sua própria.

Torna-se, ao mesmo tempo, mais desconfiado e mais desinformado, conhecendo o mundo mais pelo “ouvir dizer” do que pela experiência direta. A realidade passa a ser filtrada, editada e, muitas vezes, distorcida.

As bolhas criam falsas impressões. Quando se consolidam em grupos, reforçadas pelo sentimento de pertencimento, geram uma perigosa falta de sintonia com o restante da sociedade. Problemas coletivos passam a ser relativizados, minimizados ou simplesmente ignorados.

A empatia dá lugar à autoproteção e o interesse público acaba substituído pela preservação de privilégios.

Nesta edição, mostramos um exemplo concreto dessa desconexão: o aumento do duodécimo para quase todas as instituições de Mato Grosso do Sul, mesmo após um ano marcado por crise financeira, enquanto cresce a sobrecarga sobre o Poder Executivo.

É sobre ele que recai, de forma quase exclusiva, o peso de enfrentar as dores reais da sociedade: da falta de recursos para serviços essenciais às demandas crescentes por saúde, educação, transporte e assistência social.

Essa discrepância orçamentária não é apenas um dado técnico. Ela reforça as bolhas institucionais. Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis.

Trata-se de um desequilíbrio que aprofunda a sensação de injustiça e distancia ainda mais as instituições da realidade vivida pela população.

Seria desejável que integrantes das instituições que recebem repasses de duodécimo saíssem de suas bolhas. Que vivessem mais intensamente a realidade fora de gabinetes, relatórios e planilhas.

Que entendessem que, em tempos de dificuldades financeiras, reforçar privilégios e ampliar confortos institucionais não é apenas insensível, é socialmente injusto.

Romper bolhas não é simples, mas é necessário. Para indivíduos, para grupos e, sobretudo, para instituições públicas. A democracia e a justiça social exigem mais contato com a realidade concreta e menos acomodação em mundos protegidos. Caso contrário, seguiremos administrando percepções, e não problemas reais.

ARTIGOS

A Interpol e as lições do roubo ao Louvre: quando a cultura exige proteção global

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural

16/12/2025 07h45

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A Interpol é amplamente reconhecida por seus sistemas de avisos e pela atuação no combate ao crime organizado transnacional.

O recente episódio envolvendo o Louvre, porém, recoloca em evidência um ponto ainda subestimado no debate público: crimes não violentos, como o roubo de bens culturais, também demandam tutela internacional qualificada.

O tráfico de obras de arte e de patrimônio histórico segue sendo um delito de baixo risco e alto lucro, alimentado pela opacidade do mercado e pela fragmentação das respostas estatais.

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural. A Interpol parte dessa premissa, ao reconhecer a cultura como interesse jurídico protegido, merecedor da mesma atenção dedicada à vida, à segurança e à integridade física.

Nesse contexto, o Banco de Dados de Obras de Arte Roubadas da organização cumpre papel central: dar rastreabilidade a um mercado em que o patrimônio cultural pode, com facilidade, converter-se em saque.

A existência do banco de dados não é apenas simbólica. Ela permite a identificação de peças subtraídas, inibe a circulação ilícita e oferece suporte técnico às investigações nacionais.

Ainda assim, a eficácia do sistema depende de algo que nem sempre acompanha a velocidade do crime: cooperação internacional efetiva e compartilhamento ágil de informações entre agências de aplicação da lei.

Há espaço evidente para aprimoramentos. A ampliação do banco de dados com atualizações em tempo real, a integração mais ampla de museus, casas de leilão e colecionadores privados, além de protocolos obrigatórios de verificação de procedência, fortaleceriam significativamente o combate ao tráfico ilícito.

Do mesmo modo, penalidades mais rigorosas e treinamento especializado para forças policiais e autoridades alfandegárias são medidas indispensáveis para reduzir a atratividade econômica desse tipo de crime.

O episódio do Louvre serve como alerta. Proteger bens culturais não é capricho elitista nem pauta secundária: é defesa da memória, da identidade e do patrimônio comum da humanidade.

Quando uma obra é roubada, perde-se mais do que um objeto, perde-se um fragmento da história coletiva. A resposta, portanto, precisa ser global, coordenada e à altura desse valor.

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