Para quem chega a Mato Grosso do Sul cruzando o Rio Paraná pelo porto de São José, ela é a primeira moradora. Mas para quem sai, a senhora Neuza Aparecida de Souza, de 69 anos, é a última moradora do Estado. Além de ser a última, porque depois dela o estado acaba, é a única moradora de um povoado que ela insiste em chamar de Porto São João.
Em épocas normais, seu isolamento já impressiona. Agora, porém, por conta das cheias dos rios Paraná e Bahia, os turistas da pesca que cruzavam o rio sumiram e seu principal ganha-pão, que são as vendas de um bar que funciona numa antiga casa de madeira, praticamente acabou.
De acordo com Neuza, os paranaenses cruzavam o rio para pescarias em lagoas de fazendas do lado sul-mato-grossense, no município de Batayporã. Porém, desde janeiro eles sumiram, pois o Rio Bahia subiu cerca cinco metros e invadiu todas estas lagoas, que vão continuar inacessíveis por mais alguns meses.
Sem estes turistas, o movimento praticamente acabou no bar da dona Neuza, que agora contabiliza menos de duas dezenas de veículos que param diariamente na frente de seu bar à espera da balsa, que chega a cada hora. Mas isso quando tem veículo. Quando não tem ninguém para fazer a travessia, a balsa para.
No período noturno, a partir das oito e meia, não existe mais travessia. A partir desse horário ela fica somente na companhia de seus quatro cães. Os pequenos ela põe para dentro de casa porque teme que alguma onça ataque.
Ela até conversa com os cães, mas eles não respondem. Até bem pouco tempo tinha um papagaio. Com esse sim era possível estabelecer diálogo naquele “fim da linha”, lembra. A ave vivia solta e nunca teve as penas das asas cortadas. “Algum morador das ilhas ou do outro lado do rio capturou o bicho, já que era muito manso. Ele não iria me trocar por alguma outra família. Tenho certeza disso”, comenta, quase chorando.
No pico da heia, o embarque e desembarque da balsa era feito na porta do velho bar onde vive sozinha a dona Neuza no meio da mata nativaLiteralmente no meio do mato, o bar da dona Neuza funciona numa antiga e desbotada casa de madeira. Bem próximo existe até uma construção de alvenaria que ainda ostenta a inscrição de fiscalização do ICMS. Mas o local está fechado há cerca de oito anos.
Ele foi desativado depois que o movimento de caminhões desapareceu, já que não muito longe dali, rio acima, foi construída a hidrelétrica de porto Primavera, que é utilizada como ponte. A estrada de acesso é toda asfaltada.
Para chegar ao porto, saindo de Batayporã, é necessário percorrer cerca de 60 quilômetros por uma estrada sem asfalto que corta as terras planas da região tomadas por intermináveis lavouras de milho e sorgo. Já próximo ao Rio Paraná, são as criações de bovinos e búfalos que predominam.
Em épocas passadas, o porto São João chegou a ter três ou quatro bares e os proprietários moravam nas imediações, o que dava ao local o status de povoado. Hoje, a única moradora mal consegue tirar o sustento, conforme ela mesma declara. Se não fosse a aposentadoria de um salário mínimo, ela não sabe como faria para se manter.
Porém, nem admite a possibilidade de abandonar o “povoado”. Tem energia elétrica, TV e internet, proveniente do lado paranaense. Sempre generosa, cede a senha de wiffi para quem fica à espera da balsa e neste meio tempo quer se reconectar ao mundo. Quer dizer, a impressão de “fim de mundo” é dos outros, não dela.
CONTRASTE E PERSPECTIVAS
Se no lado de cá o cenário é de “fim do mundo”, do lado paranaense, o distrito de São José é um próspero povoado, com condomínios repletos de casas de alto padrão e até um edifício com 15 andares. O acesso ao povoado é feito por rodovia asfaltada que tem até terceira pista para facilitar e acelerar o tráfego.
A barranca do rio foi transformada numa atraente praia de água doce com iluminação noturna e uma das ilhas próximas atrai centenas de banhistas todos os finais de semana de calor. A cheia provocou uma série de estragos, mas já está praticamente tudo reconstruído menos de um mês depois que a água baixou.
Os proprietários dos apartamentos e das casas nos condomínios, que em sua grande maioria residem em cidades como Maringá e Paranavaí, entre outras, são justamente os turistas da pesca que “abandonaram” a dona Neuza depois da cheia.
Em contraste ao isolamento do lado de MS, na margem paranaense tem até um edifício com apartamentos para receber turistas - (Marcelo Victor)De acordo com ela, esses turistas continuam frequentando a cidade-balneário, mas não cruzam mais o rio porque as lagoas que eram repletas de peixes foram engolidas pela cheia do Rio Paraná, que subiu em torno de 5 metros e a água chegou quase até a porta do velho bolicho onde vive faz 15 anos. Ela relata que comprou o direito de posse do antigo proprietário, Zé Leite, que ficou 40 anos à frente do bar.
Mas o desenvolvimento, acredita, deve chegar à margem direita do paranazão nos próximos anos. Os governos dos dois estados negociam a construção de uma ponte ligando o porto São José (PR) ao porto São João (MS). Dalí, uma nova rodovia seria construída até a cidade de Taquarussu, conforme a proposta inicial. A prefeitura de Batayporã reivindica a pavimentação da estrada que já existe.
Em março deste ano a Itaipu Binacional liberou R$ 2,6 milhões para bancar Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) sobre a pertinência ou não para construção desta ponte, que seria a terceira entre os dois estados.
O valor liberado para estudos iniciais corresponde a 80% do total conveniado, de R$ 3,2 milhões. Mas, para instalação da ponte de cerca de dois quilômetros seriam necessários pelo menos R$ 350 milhões.
Projeto em estudo prevê construção da terceira ponte ligando MS ao PRIsso, não significa, por enquanto, que a ponte realmente sairá do papel. Não significa, também, que o povoado do porto São João, do lado de MS, renasça.
Ao contrário, sem balsa, possivelmente ninguém mais pararia do lado de cá e o antigo bar da dona Neusa tenderia a perder até as duas dezenas de clientes que tem atualmente. E, por mais que um estranho possa ver o porto São João omo o "fim do mundo", para a dona Neusa é o centro do universo, assim como qualquer ser vê o lugar onde mora.


