O resgate dos conhecimentos oriundos dos ancestrais e a preservação dos costumes e do idioma são os grandes desafios da etnia indígena guató, grupo que chama atenção, não somente por numericamente ser o menor dos que vivem em território sul-mato-grossense, mas por serem os humanos que habitam o Pantanal há mais tempo e que convivem com o bioma há séculos ou, por que não, há milhares de anos – isso ainda há de se provar.
“Hoje a grande riqueza da cultura guató é o nosso idioma: temos apenas três falantes nativos da língua guató”, conta o cacique da Terra Indígena Guató, Laucídio Corrêa da Costa, uma área de 10,9 mil hectares, mas que podemos chamar de santuário, localizada no extremo-norte de Mato Grosso do Sul, na Ilha Insú, na Serra do Amolar, encravada entre as divisas de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e a fronteira com a Bolívia.
O maior desafio dos guatós é não deixar que as tradições de seus antepassados, os primeiros pantaneiros, se percam em meio ao avanço do modo de vida do homem branco a que todos eles foram submetidos.
“A revitalização da língua é uma preocupação. E o que nós estamos fazendo? Pesquisa, muita pesquisa”, explica o líder da comunidade, que atualmente conta com 280 moradores.
Conforme Laucídio, os três anciões guatós moram na cidade, em Corumbá. Na zona urbana, segundo ele, estão mais próximos os serviços de saúde, por exemplo.
“Os anciões são muito delicados, não gostam de aglomerações, são tímidos e falam pouco”, conta o cacique. Mas, ainda assim, os guatós mais jovens têm tido contato estes ancioões para catalogar os hábitos da etnia e passar para as novas gerações o idioma e as tradições.
“Temos professores indígenas que trabalham com pesquisa. Eles têm gravado as conversas com os anciões”, explica. São os mesmos professores guatós que ensinam o idioma na escola da tribo, dentro da terra indígena na Ilha Insú.
“É muita história, cultura. São frases, palavras... E estamos levando tudo isso para a unidade escolar. Lá, a língua guató é uma disciplina da grade curricular”, explica.
CULTO À ÁGUA
Além do idioma, os guatós ainda mantêm outras tradições, como benzeções, rituais de cura e cantos e danças para a divindade. E por falar em cultos, antes de serem introduzidos ao cristianismo, os guatós enxergavam Deus em algo que é muito abundante no Pantanal: a água.
“O índio guató sempre teve na água algo divino. Ela sempre esteve em tudo na nossa existência, é o Deus do guató”, afirma.
Laucídio conta que os índios guatós, de uma certa forma, cultuam a água até hoje. “Nossos antepassados viviam o ano inteiro em cima da água, em uma época em que o Pantanal era muito mais cheio. O guató vivia na canoa, dormia na canoa, caçava na canoa. Daí vem a devoção à água. Atualmente, ainda usamos muito os barcos, e precisamos dela para quase tudo”, relata.
Sobre a falta do recurso natural nos últimos três anos, Laucídio diz que a deusa água protegeu a tribo dos incêndios que devastaram quase todo o Pantanal. “Por estarmos em uma ilha, não fomos atingidos pelas chamas”, lembra.
“Mas, ao nosso redor, testemunhamos toda a devastação. Em nossa aldeia, muitas aves e outros bichos [mamíferos] buscaram refúgio. No caso dos pássaros, muitos morreram, porque a ilha não tinha frutas e outros alimentos suficientes para eles. Foi muito triste”, recorda.
Ao contrário do homem branco, os guatós não têm problemas com os animais pantaneiros, inclusive, as onças-pintadas (jaguares), maior felino das Américas e terceiro maior do mundo, só atrás do tigre e do leão.
“Nunca fiquei sabendo de história de onça ou jacaré atacar indígena, porque há um respeito. A gente entende os limites que a natureza nos dá”, diz.
TRADIÇÕES
Laucídio falou sobre a importância de se preservar o idioma guató ao Correio do Estado há algumas dezenas de quilômetros de sua terra indígena, na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Acorizal, onde o Instituto do Homem Pantaneiro (IHP) conduz vários projetos, entre eles, o Felinos Pantaneiros, para preservação e monitoramento de onças-pintadas, do qual a General Motors, que convidou nossa equipe de reportagem, é parceira.
O cacique guató e as mulheres da tribo expuseram aos jornalistas parte das tradições da tribo, como, por exemplo, o artesanato. A venda de pequenos acessórios e miniaturas de canoas é uma das fontes de sustento da tribo, que basicamente sobrevive dos mesmos itens há centenas de anos: extrativismo, abate de animais silvestre, cultivo de milho, mandioca e, também, mais recentemente, de bovinos.
O guató sempre foi um índio naturalmente nômade e começou a deixar o Pantanal em meados do século 20, à medida que o homem branco colonizava a região.
Em meados dos anos 1980 e 1990, a Fundação Nacional do Índio catalogou famílias de descendentes de guatós vivendo nas periferias de cidades como Corumbá (maioria), Cáceres, Campo Grande e Dourados.
Em 2003, finalmente, um decreto presidencial garantiu uma área de 10,9 mil hectares no norte de Mato Grosso do Sul, na Serra do Amolar, aos quase 300 indígenas, que ganharam uma chance de resgatar suas tradições de povo originário do Pantanal.




