Há poucos meses da estreia da segunda temporada de House of the Dragon, vale revisar alguns detalhes importantes que a série ‘mudou’ entre livro e TV. Algumas dessas mudanças foram significativas e interferem no que, em tese, já estava canônico para os fãs.
O período da Guerra Civil entre os Targaryens – A Dança dos Dragões – é um dos mais sangrentos e interessantes do livro Fogo e Sangue, cuja conclusão é trágica: vários Targaryens morrem (incluindo Rhaenyra) e os dragões são extintos.
Em tese, não há como mudar, por exemplo, o destino trágico de Rhaenyra (que Joffrey celebra em Game of Thrones), mas, como a série inverteu alguns detalhes importantes até isso pode ser temido.
O receio não é infundado (vamos ressaltar em seguida), mas, em geral, o que House of the Dragon fez foi apresentar mais elementos para o que era inconclusivo no livro, com o foco de nos dividir na torcida entre Verdes e Pretos. Teremos que escolher um lado, como avisam. Nada melhor do que olhar algumas das mudanças mais significativas da série.
1- A ligação entre Alicent Hightower e Rhaenyra Targaryen
A principal alteração entre livro e série inclui aproximar as inimidas Alicent Hightower e Rhaenyra Targaryen, em idade e relacionamento. A mudança aumenta o drama entre as duas, claro, mas também reduz o nó da questão que é o ódio mútuo entre irmãos e a briga de ambos pela Coroa após a morte de Viserys I.
A distância de quase 10 anos entre as duas que existe no livro dá à Alicent uma dimensão mais poderosa, nos deixa intrigados quanto à sua natureza e igualmente dá à ela maior sentido do que ficou na série, mesmo sendo protagonista.
Em Fogo e Sangue, é insinuado que Alicent foi usada por Otto ainda no período do reinado de Jaehaerys e ela é muito mais atuante ao lado do pai desde o início. Sua relação com Rhaenyra começa cordial e se desgasta aos poucos, até a hora que antagonizam – usando suas cores como teste de lealdade no reino – estamos genuinamente de um lado ou de outro.
Ao confundir a relação das duas, as aproximando como confidentes desde cedo e criando a traição pessoal como motivo da briga, meio que caiu na armadilha patriarcal que toda trama de George R.R. Martin tem conflito. Isso mesmo, no início as obras deixavam claro o universo opressor no qual as mulheres circulam sem reconhecimento ou segurança, mas quando passou a querer trazer o protagonismo feminino, não acertou porque nem Game of Thrones ou Fogo e Sangue são histórias de universo feminista.
Toda mudança que as séries fazem para equilibrar a questão e contextualizá-las com a cultura atual comprometem outros personagens, em geral, os estragando (Jon Snow, Tyrion Lannister, etc). GOT foi pega no auge dessa mudança cultural quando já estava no ar e HOTD já estava publicado, portanto os showrunners ficaram com as aparapucas para resolver.
Na minha opinião fizeram o melhor possível dentro das circunstâncias, mas mulheres percebem que são homens tentando e não são mulheres contanto as histórias. A complexidade que tentaram trazer para Alicent e Rhaenyra é outro exemplo dessa visão masculinizada do que é a amizade feminina.
Na série, Alicent é “humanizada” como uma jovem tentando agradar, jogar pelas regras e ser correta em um jogo feio, como seu pai a alerta.
Ela muda quando percebe que Viserys e Rhaenyra não são honestos com ela, mas, mesmo assim, há uma mudança que não acompanhamos na transição das atrizes que interpretam Alicent e Rhaenyra jovens para as adultas.
Emily Carey e Milly Alcock fizera, respectivamente, Alicent e Rhaenyra, uma doce e tímida e a outra autoconfiante e extrovertida. Já Olivia Cooke e Emma D’Arcy inverteram a dinâmica: depois de 10 anos como Rainha, Alicent é forte, autoritária e enfrenta Rhaenyra sem meio-termo, mas a princesa agora é doce, receosa e insegura diante da ex-amiga.
Faz sentido diante das circunstâncias? Sim! Foi uma boa mudança, mas ela também exclui o essencial que é a rivalidade de Rhaenyra com os filhos de Alicent, algo que elas transportaram para a próxima geração.
2- A aliança entre Rhaenys e Rhaenyra Targaryen
Outro relacionamento “diferente” do livro é o de Rhaenys e Rhaenyra Targaryen, por vários motivos.
Um deles é que no livro, depois que é preterida como herdeira por ser mulher, Rhaenys tenta ainda colocar seu filho na sucessão em vez de Viserys e não fica explícito como reagiu ao não conseguir.
A série explica isso no piloto, porém a colocando novamente como candidata também. A partir daí, o cinismo de Rhaenys como “a rainha que nunca foi” é maravilhosamente mostrado por Eve Best, mas meio que em segundo plano. Cabe ao marido dela, Ser Corlys Velaryon (Steve Toussaint) a explicitar frustrações e ambições.
O que difere é como ela e Rhaenyra quase não se dão desde o início, algo que no livro parece ser ao contrário. Ao ver que a princesa teve um pai que lutou por ela como sucessora, fica subentendido que Rhaenys teve sororidade e mais ainda, defendeu o direito de sua prima como o seu, sendo uma das primeiras e importantes aliadas quando os verdes dão o golpe.
Na série, Rhaenys fica indecisa, flerta com a possibilidade de ficar do lado dos Hightowers até que finalmente abraça a causa de Rhaenyra no final da temporada.
O arco pode ter feito sentido, mas é mais bonita a amizade das duas que transparece nas páginas e que não esteve em nenhum episódio. Faz sentido, no entanto, por outras razões. Ao escolher a inclusão e colocar os Velaryons como pretos (de pele), o que é uma dúvida (se os filhos de Laenor e Rhaenyra são dele) fica muito mais claro na série, a ponto de ser até uma falha narrativa. Falaremos mais sobre isso à frente.
Dessa forma, o ressentimento de Rhaenys na série é plausível e esperado, pois embora saiba que o filho é gay, seus netos não são dele.
Não bastasse essa humilhação, ele suspeita que Rhaenyra mandou matar Laenor para poder se casar com Daemon (Matt Smith), mas na verdade a Rainha dos pretos fez um acordo com o marido e forjou sua morte, para que pudesse fugir e ir viver com seu amante longe de Westeros.
Se soubesse do ato de amor de Rhaenyra, talvez Rhaenys tivesse tido outra atitude, mas, como nem desconfia, a mudança deu outra dimensão e justifica inicial incerteza de que lado ficaria. Eu gostaria de que alguma forma ela soubesse que Laenor está bem, mas é improvável.
Divulgação3- A complexa relação de Alicent com os filhos
Na série, mantendo a coerência com a triste realidade de Alicent, que foi prostituída pelo pai para que seduzisse o Rei e elevasse os Hightowers no jogo do Poder, ela obedece e faz o que é esperado dela, mas tem uma relação quase conflituosa com os filhos, frequentemente sem paciência com eles.
Nas páginas de Fogo e Sangue não é claro como ela se relaciona, mas fica implícito que se dá bem com os filhos e é orgulhosa deles. Essa mudança foi bem interessante e contrasta com o carinho que Rhaenyra trata os filhos, cuidando deles e feliz com sua prole.
4- Os romances de Rhaenyra
Na verdade, não é uma alteração, mas uma explicitação do que é apenas sugerido no livro. Dos homens da vida da Rainha, todos acabam influenciando a crise que provoca o golpe dos verdes contra ela, direta ou indiretamente.
Primeiro, a sedução de Daemon, que a inicia sexualmente segue o que é citado Fogo e Sangue, portanto há fidelidade e confirmação de uma relação importante e questionada.
Em seguida, esclarece que a proximidade com Ser Criston Cole tem mesmo a ver com um romance, mas inverte o esperado. Os narradores do livro – homens – sugerem que Rhaenyra foi rejeitada por Cole e que ele se ofendeu com a tentativa dela de seduzi-lo.
De fato é mantido o ódio dele por ela, mas nós sabemos que o que mudou foi o fato de que Rhaenyra foi inconsequente com os sentimentos do seu guarda-costas, que ela o seduziu mas jamais o considerou como nada além de amante.
Ele, portanto, se sentiu usado e desprezado, passando a querer destruí-la. Particularmente acho hilário que nos anos seguintes, ele siga olhando para ela com raiva e Rhaenyra mal lembre de sua existência.
O casamento de Rhaenyra com Laenor era harmonioso dentro do possível, mas ele não conseguiu nem mesmo cumprir seu papel de gerar um herdeiro legítimo.
Portanto, é normal que ela encontrasse outro que a quisesse sexualmente, mas o fato de que teve três filhos ilegítimos com Ser Harwin Strong (Ryan Corr) é um dos problemas mais sérios para a sucessão dela.
Assim como na história impressa, o romance entre os dois é fato conhecido em toda Corte, mas não é mencionada como Ser Corlys ou Rhaenys lidaram com o fato. Parece que eles não a julgam pois eles sabem que Laenor é apenas um amigo dela.
Na série, a ambição de Ser Corlys é tão cega que ele ignora o fato de que ‘seus netos’ sejam brancos e os trata como legítimos. Acho isso grandioso dele, mesmo que a razão seja tortuosa. Rhaenys, por outro lado, trata bem as crianças mas é mais distante.
Infelizmente vimos pouco do amor entre Ser Harwin e Rhaenyra, mas com três filhos e mais de dez anos juntos, certamente ele foi um grande amor dela.
5- O destino de Laenor Velaryon
A principal mudança de House of the Dragon, para mim, é a pior também. Ao providenvciar o final feliz para o casal gay altera um dos fatos mais sensíveis da questão da guerra. No livro, Laenor é morto por seu amante, não há um corpo queimado não identificado.
A dúvida é se Rhaenyra mandou matá-lo ou se foi Daemon, que também ficou viúvo ao mesmo tempo e pode finalmente se casar com sua sobrinha.
O casamento de Daemon e Rhaenyra sacode Westeros, mas é uma união legítima e que gera herdeiros legítimos. Ao colocar Rhaenyra como bígama reforça o time dos Verdes que a apontam a conduta sexual dela como outro impecilho de ser Rainha (o principal problema é ela ser uma mulher).
Que Jacaerys, Lucerys e Joffrey fossem ilegítimos estávamos ok, mas o fato é que agora também são tanto Aegon III como Viserys II, os filhos de Daemon e Rhaenyra. Como apoiadora da Rainha dos Pretos, fiquei triste de rejeitar o carinho do showrunner com Laenor, mas ele serviria mais morto do que vivo.
6- A ligação entre Mysaria e Otto Hightower
Não é exatamente uma mudança, mas nunca ficou claro no livro como Otto Hightower soube do brinde no bordel feito por Daemon quando Viserys ficou viúvo e perdeu o filho homem, mas House of the Dragon mostrou que a amante do príncipe rebelde fazia jogo duplo.
Mysaria (Sonoya Mizuno) era a principal informante de Otto, mas terminamos a 1ª temporada com ela se voltando definitivamente contra os Verdes quando seu estabelecimento em King’s Landing é incendiado numa clara tentativa de matá-la.
Mysaria será a Mestre dos Sussurros para os Pretos, rivalizando com Ser Larys Strong (Matthew Needham) para manter a rede de informantes mais ágil e reveladora dos dois reinos. Esse embate vai valer acompanhar.
O que efetivamente mudou em relação à Mysaria é que, no livro, ela estava mesmo grávvida de Daemon e querendo se casar com ele, mas como o príncipe já era casado ela foi despachada para Lys e perde o bebê na viagem, gerando ressentimento tanto do lado dela quanto do de Daemon.
Em House of the Dragon não apenas ela não esperava o filho como argumentu que não queria nem casar ou ser mãe. De qualquer forma, agora que foi atacada, faz sentido apoiar Rhaenyra contra os Verdes, que tentaram matá-la.
7- Vaghar dando pontapé para a Guerra
A sequência de Aemond atormentando Lucerys e provocando sua morte são algumas das páginas mais apavorantes e emocionantes da história. Ter transformado o ataque em um momento no qual Aemond perdeu o controle de sua dragão tirou muito do drama.
Não fosse o carisma ed Ewan Mitchell, que acertou em cheio na atitude sombria e exagerada de sua personagem, esse momento no qual tenta impedir Vaghar de atacar teria estragado a série.
Fica agora o mistério se ele vai esclarecer a verdade ou se vai levar a fama sem merecer. Ele quis assustar o sobrinho, mas não ia matá-lo. Agora é tarde. O ódio e o desejo de vingança de Rhaenyra serão ‘justificados’ e muda todo o cenário do conflito.
8- Os Velaryons
Uma das mudanças mais radicais, mas que passaram sem problemas foi a de colocar Sor Vaemond Velaryon (Wil Johnson) como irmão de Corlys em vez de sobrinho. Vaemond é arrogante como na série e ofende Rhaenyra chamando seus filhos de bastardos, mas tê-lo tentando tirar Lucerys da linha sucessória de Driftmark criou um impasse interessante.
Ser Corlys estava doente, quase morto e com isso Rhaenyra ganhou um problema a mais quando Vaemond decide pleitear os títulos do irmão. Corlys, que tinha vergonha do filho ser gay, colocou seu “neto” Lucerys como seu sucessor, o que ofendeu a Vaemond porque todos sabiam que Laenor não era o pai do menino.
No entanto, a série coloca essa virada como Rhaenys ignorando o cunhado que queria o que era dela por casamento e defendendo que o título fosse para sua neta, Baela, filha de Daemon e Laena Velaryon.
Claro que é legal Rhaenys defender sua neta e tentar emplacar uma mulher como herdeira, mas ela, melhor do que todas, sabia que era uma causa impossível.
Mais ainda, ao alertar Rhaenyra desde sempre que Westeros não aceitaria uma Rainha mulher, Rhaenys sabia da importância de engolir a raiva e apoiar seu neto oficialmente, até para manter a memória de seu filho. Parece sutil, mas não é.
No final, Daemon executa Vaemond e um moribundo Viserys mais uma vez reforça Rhaenyra como sucessora, mas foi por pouco.
9- A profecia de Fogo e Gelo
A mão do roteiro pesou em tentar amarrar coisas que Game of Thrones bagunçou seriamente. Inserir o “sonho de Aegon” sobre os white walkers e colocar a invasão dos Targaryens como uma iniciativa de Aegon, o Conquistador para “salvar Westeros” ficou infantil.
É também um detalhe a mais que não resolve o problema de que nem Jon Snow (Kit Harington) ou Daenerys (Emilia Clarke), mais ainda Jon, seria o Príncipe Prometido. Mesmo que usando a adaga de Aegon, foi Arya (Maisie Williams) que matou o Night King e não seu herdeiro. Honestamente, deveriam deixar passar e esquecer toda a questão da Longa Noite.
10- A personalidade de Viserys
Viserys no livro é gordo, bonachão e um rei fraco, sem despertar grandes lideranças. Paddy Considine trouxe para o monarca uma docilidade e profundidade que mudaram a maneira que víamos o Rei. Um homem bom, focado na Paz e Diplomacia, sem ser levado à sério pelos belicosos senhores que ambicionam Poder e combate. Foi uma atuação brilhante do início ao fim e uma adaptação que enriqueceu a história.

As pinturas de Isabê também estarão na Casa-Quintal 109 de Manoel de Barros, museu na antiga residência do poeta, no Jardim dos Estados - Foto: Divulgação


Filme lança hoje - Foto: Divulgação

Patricia Maiolino e Isa Maiolino
Ana Paula Carneiro, Luciana Junqueira, Beto Silva e Cynthia Cosini


