“Tínhamos uns 30 e agora temos 1.030!”, exclama Eleuzina Crisanto de Lima, 50 anos de idade e mais de três décadas de dedicação à Biblioteca Pública Estadual Dr. Isaías Paim.
O salto nos números informados pela coordenadora da instituição, que integra o sistema da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS), está relacionado a uma doação de mangás que a unidade recebeu, há duas semanas, da Fundação Japão.
Essa entidade sem fins lucrativos, ligada ao Ministério das Relações Exteriores japonês, atua para divulgar a cultura do país oriental na América do Sul.
Na verdade, foram entregues 792 títulos dos conhecidos gibis de histórias em quadrinhos que são produzidos para leitura “de trás para frente”, ou, mais precisamente, da esquerda para a direita, o contrário do hábito de leitura nos países do Ocidente.
O restante ainda será enviado, o que não impede a coordenadora de celebrar o fato “inédito” para Campo Grande. Talvez até mais que isso.
Embora não haja um levantamento preciso, o total de títulos, possivelmente, posiciona a Biblioteca Isaías Paim como detentora de um dos mais expressivos acervos do País dedicados às HQ’s, que tradicionalmente abordam temas e personagens do Japão e vem se abrindo para outras culturas.
UM MARCO
“Somos um marco dos mangás, esse volume de títulos não tem na Biblioteca Municipal, não tem no Sesc e em nenhuma outra [biblioteca] da cidade”, diz a coordenadora, deixando escapar uma ponta de orgulho. “E não é somente entretenimento, é também história e conhecimento”, afirma Eleuzina.
O privilégio foi para poucos. Outras duas instituições de outros estados receberam a mesma quantidade de exemplares cada uma, todos com tradução em português – a Biblioteca Pública Estadual Adonay Barbosa dos Santos (Acre) e a Biblioteca Pública do Espírito Santo.
Eleuzina conta que a deferência é resultado de ações sociais como as que são desenvolvidas pela Isaías Paim – entre outras, cursos de redação e de oratória, atividades de estímulo ao letramento e campanhas de doação para asilos.
“Estou muito feliz, poderia ser uma coleção voltada à gastronomia, por exemplo, já que os pratos japoneses são um sucesso, mas, em reconhecimento ao gosto específico por esse tipo de literatura por aqui, a proposta foi com mangás. Campo Grande tem muitos adeptos”, comemora a bibliotecária, que fez graduação na área pela Unigran, mas ingressou bem antes disso, aos 14 anos, na unidade de livros da FCMS.
“Entrei limpando os livros, o acervo ainda não era informatizado e eu acabei decorando tudo. Se alguém perguntava por ‘A Moreninha’, eu já sabia em que prateleira estava sem consultar a ficha”, recorda-se Eleuzina.
Ela admite que não é uma fã das mais ardorosas dos mangás. Mesmo assim, como uma apaixonada pelos livros, seu contato com as novas obras foi muito além de simples conferência, catalogação e tombamento.
TEMAS
Eleuzina já passou o olho em vários títulos, leu alguns e tem até um preferido: “O Jardim das Palavras”, baseado no filme de 2013 de Makoto Shinkai, sobre um estudante que sonha ser sapateiro e vive uma triste história de amor que se dá somente em encontros quando chove pela manhã.
As novidades incluem edições que, por exemplo, tanto adaptam um clássico de 1954 do cineasta Akira Kurosawa (1910-1998), “Samurai 7”, como narram a trajetória do artista plástico Katsushika Hokusai (1760-1849).
Ao lado de Kenji Mizoguchi (1898-1956) e Yasujiro Ozu (1903-1963), Kurosawa forma uma espécie de tríade incontornável do cinema japonês, de forte influência para diretores de todo o planeta.
Reconhecido como um grande especialista em pintura chinesa no Japão, Hokusai é autor da xilogravura “A Grande Onda de Kanagawa” (1830), uma das mais célebres obras de arte da iconografia nipônica, e tido como o primeiro mangaká (criador de mangás). Quem assina a sua biografia é outro papa no assunto, Shotaro Ishinomori (1938-1998).
BÍBLIA
Dialogando com a influência de Hokusai, Guilherme Petreca e Tiago Minamisawa criaram “Shamisen”. O mangá da dupla de brasileiros inspira-se na história real de Haru Kobayashi (1900-2005), uma importante musicista cega, para desvendar o instrumento que dá nome à narrativa e é símbolo da música japonesa. Quem acessar o QR Code poderá ler a publicação curtindo a melodia shamisen.
E nem o livro sagrado do cristianismo escapa aos álbuns gráficos da terra do sol nascente.
Sim, a Bíblia também virou mangá e pode ser lida “de trás para frente” na biblioteca da FCMS. No dia 19 de fevereiro, um sábado, uma legião de fãs desse gênero de romance gráfico marcou presença no local para conhecer o novo acervo.
A CARÁTER
A turma estava vestida, a caráter, de heróis e vilões que se revezam entre games, animes e mangás para viver suas aventuras. A estudante Alex Moon, de 14 anos, estava na pele de Junko Enoshima, da série “Danganronpa”.
O pedagogo Fernando Michels, de 29, e a fisioterapeuta Laisa Okami, de 27, encarnaram, respectivamente, Sasuke e Tsunade, do megassucesso “Naruto”.
Aos 41 anos, a servidora pública Mabel Valverde atacou de Levi, da série “Ataque dos Titãs”, publicada de 2009 a 2021, com exitosas incursões pela TV, pelo cinema e por outros formatos ao longo desse tempo.
“Achei maravilhoso o acervo, é uma ótima oportunidade de outras pessoas conhecerem e reconhecerem essa cultura que já vivenciamos”, aposta Mabel.


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