A ceia, a árvore e os presentes, as promoções do comércio, a roupa nova, as viagens, os encontros e reencontros em família.
Qual o sentido de tudo isso durante o período natalino? “Celebrar o nascimento de Jesus Cristo”, respondemos maquinalmente para nós mesmos.
Muitas vezes a léguas de distância de uma compreensão mais profunda do papel real ou do traço de distinção que demarca a dimensão divina do filho de José e de Maria.
Foi o amor sem medida de Jesus para com o próximo – sentimento materializado nos fatos, nas ações e nos sacrifícios narrados no Novo Testamento – que o tornou um nome a ser louvado nas alturas por seguidores do cristianismo em todo o planeta.
Mas, afinal, em que consiste o amor cristão em pleno século 21 e por que esse sentimento continua fazendo a diferença para muita gente?
Para adeptos ou não, o catolicismo, ou qualquer outro credo, independentemente da fé de cada um, tem a função prática de organizar a subjetividade dos indivíduos e de estruturar toda a sociedade.
É o que defende o filósofo Alain de Botton no livro “Religião para Ateus – Um Guia para Não Crentes Sobre as Utilizações da Religião”.
Com todo o desgaste enfrentado pela Igreja Católica nos últimos 10 anos, seu ícone maior, Jesus Cristo, permanece imbatível com suas credenciais de bondade extrema e de operação de milagres.
ENTREGA
Permanece, do mesmo modo, a pergunta sobre a essência do amor cristão nos tempos que correm, uma questão que cala ainda mais fundo no coração dos fiéis durante essa época do ano.
Passamos a palavra para quem vive a fé do amor de Cristo como realidade cotidiana, seja por ofício ou por adoração.
“O amor cristão é um amor que não espera nada em troca. É um amor doação, entrega. Para Jesus, o amor era algo que estava acima de todas as realidades."
"Tanto é que ele aceitou morrer na cruz por amor. Para que nós possamos nos salvar, ele se entrega por nós”, diz o frei João Francisco Neto, da Paróquia São Francisco de Assis.
“O amor de Jesus Cristo pode servir de referência para tantas pessoas, mesmo aquelas que não acreditam em Deus e em nada de religião, mas têm sentimentos verdadeiros, recíprocos."
"Pode servir para todos porque é um amor de entrega, que não exige nada em troca. É um amor que faz para ver, de fato, o outro realizado, não é para si."
'Você faz aquilo porque o outro estando feliz você também está feliz. Mesmo que não saiba ou não acredite, se você faz uma caridade, está realizando um ato de amor, amor de Jesus”, explica o frei João Francisco.
“Quando a pessoa faz isso pensando no bem comum, se você fala uma palavra de ânimo para alguém, de entusiasmo, está realizando a vontade de Jesus Cristo."
"Quando você olha pelos menos favorecidos, está fazendo um gesto de amor de Jesus Cristo. Quando você se entrega verdadeiramente pelo bem do outro, perdendo, às vezes, tempo em uma conversa, está realizando o amor de Jesus Cristo”, prossegue o pároco.
SEM LIMITES
“Deus nos ama sem limites, por isso ele mandou o seu filho Jesus como esse amor para o mundo. Esse amor que veio por amor a nós morreu na cruz."
"Significa que o amor de Deus por nós é muito grande, infinito, sem limites”, resume o padre Gregorius Wuwur, da Indonésia.
Nascido em Kalikasa, a 1.800 quilômetros ao leste de Jacarta, capital do país-arquipélago, o padre deixou a cidade natal há quase 30 anos para cumprir missão religiosa no Brasil.
Por 12 anos, o religioso, que integra os Missionários do Verbo Divino, conduziu rituais católicos e obras sociais em paróquias de Dourados e de Itaquiraí.
Recebeu também o título de cidadão sul-mato-grossense, concedido pela Assembleia Legislativa em 2019. “Me sinto muito bem aqui”, diz o religioso, que deixou Foz do Iguaçu (PR), onde vive atualmente.
E esteve em Campo Grande no fim de semana passado para celebrar um casamento. “O amor é diferente quando a gente vai falar do amor humano e do amor de Cristo”, afirma o religioso.
“O amor de Cristo, de Deus, é sem limite, enquanto o nosso amor tem limites. Eu amo até ‘nesse’ ponto. E a gente fala ‘eu amo você, por isso casei com você’.
Por exemplo, esse casamento. Mas quantos casais não falam que o amor acabou? Para Deus, o amor não acabou, o amor continua para sempre. Não existe acabar”, pondera o padre Wuwur.
“O amor de Deus está em tudo ao nosso redor. Desde quando a gente olha para a natureza que está ao nosso redor, para a chuva que cai, o dia que amanhece, é Deus que se faz presente."
"Não tenho outra explicação para tudo isso, para a gente que é católico ou de qualquer outra religião. Deus está vivo no meu coração, eu sinto ele no amor das pessoas, no amor do meu esposo todos os dias comigo, no amor dos meus irmãos, da minha família."
"Sinto ele nos seres humanos que estão perto da gente”, define Isadora Tetila, a noiva do matrimônio que provocou a visita do padre indonésio à Capital.
A jovem de 24 anos e Rui Maurício, seu cônjuge, moram em Dourados, e a ligação do casal com o missionário vem do tempo em que o religioso atuava na cidade.
“Com certeza”, responde ela quando questionada se Cristo e Deus são a mesma coisa. “O amor de Cristo é um amor que não inveja, é um amor puro, é um amor bondoso, é um amor que não espera nada em troca."
"Nós, seres humanos, esperamos algo em troca um do outro, e Cristo não espera nada em troca da gente. Ele simplesmente ama a gente por amar, e cabe a nós amarmos ele assim igual ou não”, postula Isadora.
“Ele olhou para aqueles sofredores e os libertou com olhar de amor, com olhar de compaixão, por exemplo, para aqueles que estão doentes, paralíticos, leprosos e mais, ele libertou porque quer que esse povo também seja feliz”, afirma o padre Wuwur.
Para Rui Maurício, o amor de Jesus Cristo é a própria vida. “É a vida que define tudo, desde a hora que a gente amanhece, tudo que a gente tem ao nosso redor."
"Todas as coisas boas e também as coisas que às vezes nós não entendemos e podem, para nós, não ser boas, tudo isso está relacionado com Cristo. Ele representa tudo para nós”, filosofa o jovem recém-casado de 32 anos.
AMOR PAGÃO
“A diferença do amor de Jesus Cristo para os outros amores pagãos, profanos, mundanos, é que Jesus não faz as coisas por interesse."
"Jesus não nos amou na cruz nos obrigando, exigindo de nós fidelidade. Não”, compara o frei João Francisco Neto.
“Ele nos deu a liberdade. Quando ele morre na cruz para nos salvar, ele deixou a liberdade."
"Se nós não quisermos segui-lo, se nós não quisermos amá-lo, se nós não quisermos obedecer os seus mandamentos, ele respeita a nossa liberdade, é algo impressionante”, frisa o religioso.
“Enquanto o amor pagão, profano, mundano, ele é um amor que exige de nós. Ele quer que a gente também se doe para o outro, queira também essas realidades prazerosas. Jesus, não. O amor de Jesus é oblação [oferta ou oferenda de cunho religioso], é entrega."
"O amor de Jesus é algo voluntário. Você quer me seguir? Vinde e vede. Não quer? Pode voltar aos seus afazeres”, explica o frei da Paróquia de São Francisco.
“Esses dois tipos de amor caminham muito juntos, porque um se espelha no outro. O amor pelas coisas mundanas, na verdade, é um reflexo do próprio amor de Cristo. Espelhar isso no sentimento com as coisas em nosso redor”, propõe Rui Maurício.
UM HOMEM COMUM?
Um Jesus Cristo dessacralizado, de algum modo, sujeito aos sentimentos pagãos, volta e meia aparece na literatura.
Grandes escritores como o grego Nikos Kazantzakis (“A Última Tentação de Cristo”, de 1951), o português José Saramago (“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, 1991) ou o norte-americano Norman Mailer (“O Evangelho Segundo o Filho”, 1997) produziram belas e polêmicas páginas sobre o “homem de Nazaré”, com suas representações de um Cristo que se questiona e, às vezes, quer só dar um tempo da função de “grande arquiteto” da humanidade.
Pode-se dizer, no entanto, que o traço de bondade e abnegação extrema de Jesus permanece inteiro no fim das narrativas desses três mestres das letras.
“Não conheço ninguém que tenha feito mais para a humanidade do que Jesus. De fato, não há nada de errado no cristianismo."
"O problema são vocês, cristãos. Vocês nem começaram a viver segundo os seus próprios ensinamentos”, afirmou o líder pacifista hindu Mahatma Gandhi (1869-1948), que também já chamou Jesus Cristo de professor.
“Hoje, a sociedade vive em busca de um amor talvez superficial. Acredito que o nosso mundo, com toda essa dinâmica de telecomunicações, das mídias sociais, acabou perdendo essa proximidade com Jesus."
"Às vezes as pessoas buscam a igreja, independente de seu credo, no momento de maior dificuldade; na hora em que perderam o controle eles acabam buscando esse amor de Jesus."
"E o amor de Jesus, nessa época que estamos vivendo, vem de encontro a um amor-compaixão. Ou seja, você sentir a dor do próximo diante de tantas catástrofes, de tantas mortes provocadas por essa pandemia, mas as pessoas ainda não se colocaram no lugar do próximo”, afirma Aurélio Belo.
NUNCA É DEMAIS
Administrador de empresas, Belo é católico praticante e, aos 46 anos, tornou-se ministro de eucaristia recentemente.
“Falta esse amor exigente, falta esse amor conversão, falta esse amor caridade. Então, Jesus vem para nos ensinar isso: que o verdadeiro amor é aquele amor que você consegue ver o sofrimento do próximo, sofrer com ele e aí sair dessa situação de dificuldade com ele."
"Jesus ama a todos, independente do seu nível financeiro, do seu jeito de ser, se você é gordo, magro, baixo, alto, ele ama a todos”, prossegue o ministro.
“O amor cristão existe e é vigente, porém falta esse ânimo a mais no ser humano, falta ser mais quente, falta ser vivido."
"Porque o tempo está passando tão rápido e as pessoas não se dão conta disso. Muitos morreram e não tiveram tempo, talvez um filho, um pai ou uma mãe, de dizer o quanto ama esse ente querido."
"E aí, diante do caixão, infelizmente, fica o remorso, o arrependimento, aquela sensação de vazio no coração de não ter amado mais, de não ter vivido mais, de não ter dito ‘eu te amo’ cada vez mais."
"Então, a sociedade ainda busca esse amor. Esse amor ainda existe, porém ele deve ser aquecido ainda mais. Deve ser um amor mais presente na vida do outro”, resume Belo.
VAIDADE ZERO
A trajetória reclusa do messias do cristianismo até ser batizado, já na vida adulta, chama atenção do frei João Francisco Neto.
“Para mim é algo impressionante Jesus não ter se manifestado até os 30 anos. Eu acho isso fantástico, uma coisa, assim, fora do normal ele ter ficado em Nazaré até os 30 anos mais ou menos para poder se manifestar publicamente."
"Um homem que era Deus, tinha toda a sabedoria, todo o conhecimento, mas se humilhou a ponto de ficar escondido. Ninguém ouviu falar de Jesus dos 12 anos aos 30. Ninguém fala”, revela o religioso franciscano.
“Ele ficou na carpintaria de Nazaré ajudando o seu pai, José. E ali, escondido na carpintaria, ninguém ouve falar nada de Jesus Cristo. Só com o batismo no Rio Jordão que ele começa sua vida pública. Isso me impressiona."
"De todas as outras coisas de Jesus Cristo, essa para mim tem uma coisa assim meio mística, que eu não sei explicar o que é. Jesus se preparando para esse grande acontecimento, que era a manifestação pública dele”, conclui o frei Francisco.


Ryan Keberle, trombonista - Foto: Divulgação / Alexis Prappas

Marcio Benevides, Maria José falcão e Fabiana Jallad
Andreas Penate e Monica Ramirez


