Olhar para frente, mas sem perder de vista o retrovisor com as imagens que marcam uma estrada acidentada de 14 anos de música e resistência cultural.
Os quatro integrantes do grupo de rap Brô MC’s dão todas as indicações de que será assim a apresentação que vão realizar, no dia 3 de setembro, no Rio de Janeiro.
O quarteto de Dourados (MS) está entre as atrações anunciadas, na quinta-feira, para a noite do rap do Rock in Rio 2022, que ocupará o palco Sunset da Cidade do Rock com os seguintes nomes, por ordem de entrada: Papatinho + L7NNON convidam MC Hariel e MC Carol; o rapper carioca Xamã convida Brô MC’s; o paulista Criolo convida a cabo-verdiana Mayra Andrade; e, para fechar, Racionais.
A cotação no meio musical é medida, além do apelo midiático e das vendagens de um artista, pelo valor e reconhecimento dos palcos em que ele se apresenta.
Apesar de embalados pela produção do segundo álbum, “Retomada”, que tem lançamento previsto para o segundo semestre, “com certeza antes do Rock in Rio”, afirma a produtora Fabiana Fernandes, os quatro rappers da etnia guarani-kaiowá reafirmam a todo o instante um engajamento orgânico e essencial para quem quiser entender a motivação maior do grupo.
EGO E IDENTIDADE
Não é somente um punhado de canções exóticas de uma turma de jovens indígenas sul-mato-grossenses, com idade entre 20 e 30 anos, antenados com a música de ritmo e poesia – tradução de rap, “rythm and poetry” em inglês – que se faz no mundo.
O Brô MC’s manifesta o compromisso e o ânimo de ser portador de uma cultura ancestral que as comunidades indígenas de Dourados lutam para preservar, e da qual a própria caminhada do grupo tornou-se um testemunho vivo e contundente. Um retrato revelador que resume bastante a realidade do ser índio em um País em que o desrespeito aos povos identitários tornou-se regra.
Mas rapper que se preza costuma “mandar a letra”, ou seja, dar o recado, com suas próprias palavras.
O Correio do Estado conversou com Bruno Veron, Clemerson Batista, Kelvin e Charlie Peixoto – as quatro partes que formam o Brô MC’s – logo após a escalação para o Rock in Rio ser divulgada. Confira alguns momentos da conversa:
“A trajetória do Brô MC’s começou em 2009 e foi de altos e baixos, com algumas divergências, e a gente nunca desistiu, a gente sempre continuava. Não foi assim por acaso que a gente conseguiu chegar onde está hoje. Muitas vezes tivemos divergências no decorrer das nossas trajetórias. Alguns membros do grupo já tentaram desistir. Muitas vezes a gente não tinha shows, então, a gente ficava meses e meses sem show, que é nosso pão de cada dia, nosso trabalho”, resgata Kelvin Peixoto, ou Kelvin Mbaretê, como prefere ser chamado.
“Com isso, eu particularmente já tentei desistir. Mas algo me dizia, acho que o meu ego falava comigo, que eu não poderia desistir e, toda vez que eu tentava desistir, algo ocorria na nossa aldeia ou ao redor, principalmente nas retomadas [recuperação de áreas ocupadas]. Fomos conquistando mais espaços de pouco em pouco até que a gente chegou em um palco grande. E agora com esse Rock in Rio”, diz Kelvin.
Bruno Veron, de 27 anos, afirma que, além da música, levarão ao palco do festival “a realidade em que vivemos” em Mato Grosso do Sul. “A realidade do povo guarani-kaiowá, a nossa luta, a nossa identidade, o nosso rap sul-mato-grossense e o rap guarani, o rap indígena”, declara o músico.
TRADIÇÃO E DIFERENÇA
“A diferença do nosso som é que falamos de nossa realidade na nossa língua, cantando na nossa língua, e por sermos o primeiro grupo de rap indígena do Brasil e estar representando a comunidade indígena. Isso é o diferencial do grupo. Mostrar que o rap sul-mato-grossense é diferenciado no meio do rap nacional.
São os nossos trajes, nossas línguas, as nossas origens e as nossas rezas, certo?”, indaga Bruno em tom afirmativo. O mesmo Bruno que não se cansa de lembrar aos neófitos de que “não moramos em ocas, não vivemos nus” – na Aldeias Jaguapiru e Bororó, que integram a Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa – e que ouviu os caciques na indicação de cantos sagrados presentes no repertório do segundo CD, “Retomada”.
Além da faixa-título, que acrescenta o espanhol ao repertório bilíngue em guarani e português, o disco traz temas que já estão rodando com grande repercussão nas redes sociais, a exemplo de “Nhe’e Mbarete” e “Koangagua”.
Um diálogo maior com os representantes de mais idade e experiência na lida com a tradição das tribos.
Esta é uma diferença em relação ao primeiro trabalho, um CD demo que leva o nome do grupo e chega às plataformas digitais na sexta-feira, após 12 anos do lançamento físico, com seis faixas, entre elas, “Tupã”, “Terra Vermelha”, que rodou o mundo em festivais de cinema como trilha sonora do curta-metragem “Em Busca da Terra sem Males”, de Anna Azevedo, um dos destaques do Festival de Berlim 2017, e “Eju Orendive”, que marca a história como o primeiro videoclipe de rap indígena do Brasil e que já ultrapassa as 500 mil visualizações no YouTube.
AUDIOVISUAL
Aliás, a produção audiovisual é um universo bem próximo do trabalho do Brô MC’s, que há muito tempo está acostumado a interagir com o universo das imagens em movimento.
Além de estrelarem a série “Gualteka” (2016), que mostra o cotidiano de suas aldeias, participam do elenco de apoio do longa-metragem “Terra Vermelha”, (2008), exibido em Cannes.
O roteiro do longa brasileiro “Pele Morta”, rodado em 2019 e ainda inédito, busca inspiração na história do grupo. É um projeto do cineasta Geraldo Moraes que, com seu falecimento, acabou tendo a direção de Denise Moraes e Bruno Torres, filhos do diretor.
SEM ESPAÇO
“Não há um espaço grande para quem vem do movimento hip hop em Mato Grosso do Sul. Para quem é do rap sempre foi difícil e sempre será. Então, portanto, a gente tem que sair do Estado para a gente conseguir um espaço, tá ligado? É isso que o Brô sempre faz, sair para onde é mais reconhecido do que aqui em seu próprio Estado”, afirma Charles Peixoto.
“É mais difícil para quem leva a bandeira do movimento indígena, que é nosso caso. A gente vê que os espaços são mais abertos para quem é do sertanejo”, cutuca Charles, que está se consolidando nas picapes.
“Mas o Brô MC’s não abaixou a cabeça para isso. O Brô MC’s tipo falou ‘não, vamo quebrar essa corrente aí, mano’ e quebramos essa corrente e hoje a gente está aí, entendeu. Vai tocar com o Xamã e mostrar o nosso trabalho, a nossa cultura, a nossa língua, a nossa realidade. Como espelho para as outras molecadas. Isso é que é muito louco”, avalia Clemerson Batista.
ALEMANHA
Após uma temporada de apresentações e workshops em Frankfurt, na Alemanha, em 2018, o Brô MC’s gravou com o DJ Alok, estrela das pistas, em 2021.
Também no ano passado, relembra Veron, foi durante uma premiação transmitida pelo canal pago Multishow que eles “trombaram” com o rapper Xamã e o DJ Zé Ricardo, curador do palco Sunset, gerando a “conexão” que se tornou agenda confirmada no Rock in Rio.
Os ingressos para o Rock in Rio 2022 estão à venda desde setembro do ano passado e custam a partir de R$ 272,50 (meia-entrada) por noite. Compras e mais informações pelo site www.rockinrio.ingresso.com.


My Secret Santa Netflix - Divulgação


