Artigos e Opinião

CRÔNICA

Theresa Hilcar: "O ônibus, a catraca e as circunferências"

Theresa Hilcar: "O ônibus, a catraca e as circunferências"

FOLHAPRESS

30/08/2016 - 04h00
Continue lendo...

Todo dia no ônibus é sempre igual. Mas meu olhar atento – quem sabe um pouco crítico? – não se cansa de observar a entrada do time feminino, comprovadamente em maior número que o masculino.

Já tentei me abstrair, meditar entre uma parada e outra, olhar para a natureza, respirar fundo, mas não consigo. Elas realmente me chamam atenção. A maioria, melhor dizendo. O momento de cruzar a catraca (um nome horrível, por sinal) é um acontecimento, por vezes uma tortura.

Tudo por conta do volume excessivo de corpos e objetos,  ao mesmo tempo e no mesmo lugar, contrariando a lei da física, de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço. No ônibus, pode.

Todos os dias, testemunho imensos traseiros passando pela roleta, não sem algum esforço, claro! As coisas se complicam quando, além deles, dos traseiros avantajados, junta-se a comissão de frente em sua plenitude e abundância. Aí é hora da ginástica – vira para um lado, vira para o outro, até conseguir passar. Ufa! Pior mesmo é quando temos um terceiro fator envolvido: aquele volume que começa logo acima das coxas e termina alguns centímetros antes da comissão de frente. A temida, mas devo dizer também cultuada, barriga. 

Chego a ficar sem fôlego só de olhar. A circunferência em torno da cintura é um caso extremamente difícil e delicado.  Duro mesmo é quando os volumes ficam descobertos ou saltam para fora da calça ou da saia. Confesso que sinto um nó no estômago quando percebo, consternada, o atrito dos corpos semidesnudos com o aço. Chego a ter taquicardia, temendo que alguém fique preso para sempre entre a entrada e a saída.

Como se não bastasse o volume, digamos, pessoal, tem aqueles que carregam extras. É aí que entram as famigeradas bolsas gigantes e sacolas, quase sempre de compras. A cena é quase bizarra, não fosse incômoda. Para os outros e para mim, que fico realmente aflita diante da peleja alheia. 

Em dias de águas, junte-se a isso o guarda-chuva para formar um cenário no mínimo desconfortável e quase grotesco. E o que dizer das crianças, cujas mães não conseguem levantá-las para fazer jus à livre entrada? Elas, as crianças, são obrigadas a se arrastarem pelo chão debaixo da famigerada catraca, arrastando também um zilhão de bactérias direto das mãos para a boca.

Parte meu coração quando, além de tudo, elas levam em suas mãozinhas uma guloseima qualquer, um lanche que provavelmente lhe foi oferecido pouco antes do ônibus chegar.

Procuro evitar o transporte público na hora de pico. E tenho sorte de morar no centro, onde o fluxo é maior. Mas sei que existe constrangimento ainda pior, os chamados “assédios”, que podem vir de um “encoxamento” – termo que se usa quando o ônibus está lotado e os homens se aproveitam para se espremer contra o corpo da mulher – ou de algo ainda mais explícito. Inadmissível, para dizer o mínimo. 

Recentemente, foi lançada campanha – em forma de lei – como forma de prevenção e esclarecimento. O ato é crime. E ponto. Infelizmente, ou felizmente, o transporte público é um meio de locomoção e um direito de todos. 

Certo dia, alguém  me perguntou, talvez por ignorância, o motivo pelo qual faço uso frequente do ônibus. Para quem merece uma boa resposta, digo que abandonei há anos o carro e detesto dirigir. Aos que não merecem, apenas sorrio e digo: “É a vida”. E é a vida que transcorre assim, meio apertada, meio sem jeito, às vezes sem direito a um mínimo de dignidade. 

E posso me dar por satisfeita – quase feliz: não tenho nenhum problema para passar pela roleta. Apenas na hora em que, desavisadamente, percebo que acabaram os créditos do cartão. Essa tal de catraca é mesmo um desafio.

 

ARTIGOS

O que tem para dizer o MPF?

19/11/2024 07h45

Arquivo

Continue Lendo...

O que há de ser entendido no silêncio que o Ministério Público Federal (MPF) adotou – quando se calou e se mantém calado – diante da solução que os governos federal e estadual encontraram para pôr fim ao caso da Terra Indígena (TI) Ñande Ru Marangatu, em Mato Grosso do Sul?

Como é sabido, a questão abarcava conflitos violentos que vinham acontecendo há décadas entre indígenas e não indígenas. Esses conflitos foram desencadeados a partir da instrução do processo administrativo em que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) demarcou – pela ocupação indígena em passado remoto que ela mesmo declarou – um território inteiro de terras particulares em Antônio João, até então, integralmente ocupado, possuído e explorado há quase um século por seus respectivos proprietários. 

O que amparava esses conflitos era a teoria do indigenato, de 1912, do ministro João Mendes, que pela ocupação indígena em passado remoto identificou a TI Ñande Ru Marangatu. Essa forma de identificação de terra indígena tem sido a causa das incontáveis invasões indígenas às terras particulares que ocorreram e que ocorrem todos os dias em MS e em muitas regiões do território nacional.

Lado outro, a Comissão Especial de Autocomposição do Supremo Tribunal Federal (STF) homologou o acordo, o que leva concluir que a mais alta Corte de Justiça concorda com esse modus operandi de se identificar terras indígenas e o adota, como se tanto fosse possível, na solução das causas que julga envolvendo matéria indígena. O exemplo mais recente envolve o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365/SC.

Aliás, a Corte faz confusão quando identifica terras indígenas. Ora adota a teoria do indigenato, ora adota a sua própria interpretação, proclamada na assertiva de que a “configuração de terras ‘tradicionalmente ocupadas’ pelos índios já foi pacificada com a edição da Súmula nº 650, que dispõe: ‘Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto’”.

Notadamente, o STF relativizou ainda mais o direito de propriedade constitucional diante da matéria indígena, proclamando que, uma vez constatada a ocupação indígena em passado remoto, não há que se invocar o direito de propriedade, o título translativo nem a cadeia sucessória do domínio como defesa. Em resumo, o posicionamento extremo do Supremo é de que a ocupação indígena – seja ela presente, seja ela em passado remoto (indigenato) – define a terra indígena da União. 

A seu turno, por que o MPF – ferrenho defensor dessa ordem jurídica – deixou que os governos federal e estadual pagassem aos particulares pelas terras indígenas que ocupavam e exploravam no distrito de Campestre, em Antônio João? Com a palavra, o MPF em Mato Grosso do Sul!

Assine o Correio do Estado

ARTIGOS

A resiliência e a fé

19/11/2024 07h30

Arquivo

Continue Lendo...

Os desafios diários enfrentados por quem atua na proteção da natureza têm se tornado uma enorme prova de resistência e fé. As condições climáticas extremas, impulsionadas pelas altas temperaturas, ameaçam nossas reservas com o fogo e penalizam a fauna e a flora – já impactadas pela reincidência de incêndios violentos desde 2020.

Percebo que a fauna enfrenta o pior processo de extinção desde o período em que conseguimos a vitória no controle da caça, do tráfico de animais silvestres e da pesca predatória na década de 1980. O cenário atual é de destruição de habitat natural, em que espécies estão sendo dizimadas de forma assustadora, especialmente répteis e insetos. As chamas estão tão intensas que, somadas aos ventos fortes, invadem todos os lugares: locas, copas das árvores, etc, persistindo por meses de forma impiedosa.

Não há dúvidas de que estamos perdendo essa batalha. Somente neste ano já ultrapassamos os 3 milhões de hectares queimados. Esse trágico número foi alcançado mesmo com o empenho de recursos financeiros nas ações de combate, que certamente superam R$ 1 bilhão – entre os investimentos dos governos federal e estadual.

Nunca tivemos – em um histórico de 40 anos – uma infraestrutura de combate tão ampla, incluindo recursos humanos, equipamentos de logística, helicópteros, caminhões e embarcações. É importante destacar o trabalho pioneiro da Famasul, que contabiliza os prejuízos na produção das fazendas no Pantanal, já ultrapassando R$ 50 milhões.

Como podemos ser mais eficientes se nossa capacidade financeira já extrapola seus limites dos desafios e a força humana se mostra insuficiente, em algumas situações até incapaz? Estamos enfrentando algo sem precedentes e que excede nossa capacidade de resposta.

Não devemos nos omitir na identificação dos responsáveis. Eles existem, embora sejam poucos. Ainda assim, acredito que não haverá melhoras significativas na questão comportamental apenas com multas milionárias e possíveis prisões. 

A experiência de outros países, como Portugal e Austrália, nos indica que o ímpeto punitivo não traz uma solução completa. Esses países já lidam com incêndios gigantescos e perdas de vidas humanas em virtude deles há mais de 20 anos.

O mais impressionante – e certamente mais doloroso que as próprias chamas – são as acusações equivocadas e a ignorância de alguns que associam o crescimento dos incêndios às reservas de proteção. Ao contrário, as poucas áreas protegidas no Pantanal (menos de 5%) têm estruturas para evitar incêndios e ações preventivas em seus planos de trabalho, como a presença de brigadas.

Podemos reduzir a escalada dos incêndios ano após ano se implementarmos outras estratégias que não se restrinjam ao combate ao fogo, mas que incluam 
a prevenção. Devemos reconhecer que nossos planos atuais não estão trazendo os resultados esperados e que não será somente o aumento dos investimentos financeiros que nos trará a solução.

O ponto crítico é como um dos biomas mais preservados (cerca de 85%) passou a ser um grande emissor de gás carbônico no País. Os fenômenos naturais são impactados negativamente pelas condições climáticas extremas. Essa situação ameaça nosso bioma e exige novas estratégias que unam ciência e competência para enfrentar esses fenômenos sem precedentes.

Restaurar ao proprietário formas de manejo do fogo pode ser uma alternativa. Eles podem ajudar. Ao mesmo tempo, com mais tecnologia e grupos de ação de combate ao fogo, equipados com boa logística e equipamentos adequados, podemos reduzir o tempo de resposta. Não podemos desistir e precisamos ter fé e resistência para rever nossa relação com o planeta.

Poderíamos, em um gesto responsável, olhar e fazer algo pela nascente do Rio Paraguai. Não sou pessimista, mas talvez apenas a desesperança e o senso de urgência possam nos salvar.

Assine o Correio do Estado

NEWSLETTER

Fique sempre bem informado com as notícias mais importantes do MS, do Brasil e do mundo.

Fique Ligado

Para evitar que a nossa resposta seja recebida como SPAM, adicione endereço de

e-mail [email protected] na lista de remetentes confiáveis do seu e-mail (whitelist).