Presidente da Famasul, Marcelo Bertoni fala sobre o impasse na comissão do Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar pôr fim aos conflitos entre produtores e indígenas e também sobre safras e a preservação do Pantanal
A questão fundiária no Estado segue como um dos desafios mais complexos para a produção agropecuária e a segurança jurídica no campo. O presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), Marcelo Bertoni, defende que o único caminho viável para resolver os conflitos de terra com indígenas é o pagamento pelas áreas.
Segundo ele, não há alternativa que traga uma solução definitiva sem garantir a justa indenização aos produtores que tenham títulos de propriedade. A discussão, no entanto, esbarra na falta de critérios objetivos e na insegurança jurídica gerada pela ausência de um marco temporal claro para as demarcações.
Nesta entrevista, Bertoni também aborda as dificuldades da atual safra, que começou com otimismo, mas que enfrenta impactos da estiagem em algumas regiões do Estado. Além disso, ele discute a transformação do milho safrinha com a chegada da indústria do etanol e os efeitos da alta do dólar sobre os custos de produção.
Ainda, o presidente da Famasul destaca a importância da atuação da entidade em pautas como a preservação do Pantanal e o combate à violência doméstica no campo. Veja a seguir.
No início da atual safra, houve uma expectativa melhor que a de agora, com possíveis perdas. Como será o atual ciclo?
A safra começou com empolgação. Mas na região sul, tivemos um problema de estresse hídrico que atingiu em torno de 46% [das propriedades]. Calculamos uma quebra de mais ou menos 2 milhões de hectares. Esse problema foi mais localizado em cidades como Amambai, Laguna Caarapã e em partes de Maracaju.
Mas eu posso lhe afirmar que as plantações nessas regiões ficaram muito manchadas. Por exemplo, há propriedades em que uma parte significativa não teve chuva e foi prejudicada pela estiagem e que em outra o desenvolvimento da soja ficou dentro do esperado.
E a safrinha?
O milho está sendo plantado. Está chovendo, e por enquanto não temos reclamações. Agora, temos 2,1 milhões de hectares de área plantada. Nossa estimativa para essa safra é de que teremos uns 10 milhões de toneladas de milho, na estimativa de 80 sacas por hectare, um resultado melhor que o do ano passado.
A agroindustrialização do milho, sobretudo com a chegada do etanol, está transformando a safrinha de MS em “safrona”?
Mato Grosso do Sul era um grande exportador de milho não apenas para fora, mas também forte nas vendas no mercado interno, para outros estados como Paraná e Santa Catarina. Nos últimos anos, porém, com todos esses investimentos que tivemos aqui, primeiramente nas cadeias da suinocultura e da avicultura e agora com a produção de etanol, provavelmente todo o milho produzido por MS será consumido internamente.
E mais: a chegada do etanol de milho trouxe outra vantagem para o produtor na safrinha, pois também é possível fazer o etanol a partir do sorgo. Isso fez com que alguns produtores optassem pelo sorgo, por causa de sua resistência maior às variações do clima. Ainda estamos quantificando, mas certamente a produção de sorgo terá um grande avanço.
Aquela alta expressiva do dólar em dezembro de 2024 teve um grande impacto nos custos de produção?
O produtor é muito sábio. A maioria faz algumas travas para proteger os ganhos e mitigar os riscos, sobretudo quando se trata da venda de grãos. Normalmente, o produtor não vende toda a sua produção de uma vez só, ele vem fazendo as travas de comercialização ao longo da safra. Provavelmente, muitos produtores devem ter pego o dólar alto para fazer uma venda melhor naquele momento, mas agora o produtor também terá de estar muito atento para comprar os insumos, porque o custo atual poderá refletir na renda dele na próxima safra.
A Famasul entrou como parceira do governo do Estado no pacto para a preservação do Pantanal. Como você vê essa união de esforços por setores da sociedade, os quais até bem pouco tempo atrás tinham dificuldade de dialogar?
Em primeiro lugar, é preciso destacar que o produtor pantaneiro tem todo o conhecimento e a tradição de lidar com o bioma, tanto é que ele está lá há 300 anos e o Pantanal é muito preservado. O pantaneiro sabe lidar com esse ecossistema que é tão difícil de produzir.
Na época da criação do atual Código Florestal, nossos parlamentares foram muito assertivos ao inserir o artigo 10, que remete aos estados as políticas de preservação de biomas específicos. E Mato Grosso do Sul,
em uma posição de vanguarda, foi o primeiro a regulamentar a ocupação do Pantanal. Na época, Mato Grosso, que também divide o bioma, ficou para trás.
Essa regulamentação, mesmo tendo sido positiva em vista do que poderia acontecer, acabou sendo muito dura para o produtor. Atualmente, o produtor rural só pode mexer em 40% de sua propriedade – antes, ele tinha 80% dela totalmente livres.
E em 2023, a questão voltou a ser discutida. Muitos parlamentares tentavam legislar sobre o Pantanal sem nunca ter pisado aqui. Mas conseguimos aqui dentro de Mato Grosso do Sul, sob a liderança do governador Eduardo Riedel, redigir uma lei que agradasse a todos. A nossa questão naquele momento era não perder mais área agricultável.
Nessa negociação da lei, a gente mostrou que estava disposto a dar alguma coisa, mas também que recebêssemos algo em troca. Então, foi realizada uma construção entre vários atores da sociedade, e chegamos em uma lei que garante que o produtor receba pela preservação, por meio do PSA [pagamento por serviços ambientais].
Porque quase sempre, quando se paga pela preservação, o dinheiro nunca chega ao produtor, que está na ponta e deve preservar. Assim, criamos o fundo e garantimos que 80% dos recursos fossem destinados aos produtores. Já os outros 20% serão destinados a ações de preservação.
Mas no pagamento pela preservação, o conceito de adicionalidade (pagamento somente pela preservação sobre a área em que o produtor pode exercer atividade econômica) está mantido?
Sim. O adicional é o seguinte: eu recebo por preservar uma área que eu poderia estar usando para agricultura ou para pecuária. Então, o pagamento pelo serviço ambiental é sempre sobre o excedente. Particularmente,
eu acho um critério injusto, pois o produtor – hoje e antigamente – sempre preservou 20% de sua propriedade [reserva legal] ao longo da história e não ganhou nada com isso. No Pantanal, pior ainda. Ele foi obrigado a preservar pelo menos 50% da propriedade, e sobre essa área ele não pode ser remunerado e ainda paga impostos por ela.
Eu acredito que quem tem de pagar pela preservação é a população que deseja que o produtor preserve. E geralmente, uma grande parte da população não quer pagar por isso.
Às vezes, existe o paradoxo de a pessoa exigir a preservação da área do produtor, mas nem sequer faz a coleta seletiva na casa dela.
Repetindo: no Pantanal, o produtor só pode mexer em 40% da propriedade, fazendo transformação de pastagens. Isso restringe a potencialidade dessas propriedades, porque quando se tem um capim melhor, você tem muito mais produção e o animal se alimenta melhor. Produtores que têm essa restrição precisam de uma ajuda para se manter.
O conflito por terras com indígenas é outro problema complexo. Como anda a negociação no Supremo Tribunal Federal (STF), na junta de conciliação?
É difícil para os dois lados. Na verdade, temos conflitos em todos os estados brasileiros. Eram só 18, mas com a queda do marco temporal e com [novas] áreas reivindicadas, estamos com conflitos nas 27 unidades da Federação.
No Distrito Federal, que havia uma área que já havia sido indenizada e que não tinha indígena, hoje tem uma aldeia lá dentro, com eles reivindicando. Se eles estavam lá previamente ou não, não estou aqui para discutir isso.
O que eu tenho discutido nas reuniões e levado é que Mato Grosso do Sul é um dos estados em que há conflitos há mais tempo. E sim, nós temos problemas, mas somos um estado em que a grande parte das áreas que estão em conflito foram paraguaias. E houve a Guerra do Paraguai e elas foram incorporadas ao Brasil. As pessoas se esquecem disso. Há 150, 160 anos, o governo do Brasil imperial vendeu títulos aqui e incentivou a ocupação por famílias brasileiras, por uma questão de soberania nacional.
O que não podemos fazer é tirar os proprietários dessas áreas e fazer o que está tentando impor a todos eles, que é um status de invasor de uma propriedade que ele tem o título. O território todo do Brasil já foi indígena antes da chegada dos europeus? Sim. O que não pode acontecer é cobrar apenas do produtor por tudo o que ocorreu ao longo da história.
Falta critério objetivo para classificar o que é ou não uma terra indígena?
Sim. Por exemplo, alguém reivindica uma área e daí você fala “O.K., me dá uma prova, um estudo, de que você ou o seu grupo de fato ocupou essa área”. Sabe a resposta? Não tem. E eles acabam não apresentando,
e não vejo disposição nenhuma do outro lado em ter um estudo muito objetivo.
E mais: em um país do tamanho do Brasil, não eram todas as áreas que estavam ocupadas. Ponto. E temos muitos estudos nessas várias ações judiciais que estão tramitando dizendo que, em muitas áreas reivindicadas, não havia ocupação indígena. Não há osso, não há itens de barro nem cerâmica encontrados. Mas alguém do outro lado resolveu ou decidiu que teria de ser ali? E por que ali?
Tivemos recentemente um acordo celebrado em Antônio João. O pagamento pelas terras é o caminho?
O caminho é, sim, o pagamento pelas terras. Não existe uma outra forma de resolver o problema. Se o produtor receber o dinheiro, ele poderia se dispor a deixar a área. Agora, é bom ressaltar que nem todos desejam sair de suas terras. Até porque existem pontos nevrálgicos nesse impasse e que os dois lados dificilmente abririam mão.
Também, há vários problemas nos procedimentos da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. Há laudos com problemas, há falta de transparência nos estudos antropológicos e, principalmente, não há registro de nada disso, sobre estudos em andamento. E quando somos comunicados, está tudo pronto e não temos nem como sequer discutir.
É preciso critério. Temos a reserva Raposa Serra do Sol, em que ficou estabelecido que cada indígena teria 66 hectares. Há áreas na Amazônia com 6 mil hectares por indígena. Qual é o critério? Não existe critério.
O critério é do antropólogo que faz o estudo, e eu não estou dizendo que ele está errado, mas afirmo que é preciso que todos entendam a metodologia aplicada, para haver mais clareza nas discussões – e isso não existe hoje.
E há outros pontos controversos sendo discutidos na minuta de lei que deve sair dessa conciliação no STF – o qual, é preciso destacar, não é o lugar para se fazer uma lei, mas melhor estar participando do que estar fora, para podermos colocar o lado do produtor. Por exemplo: sobre o pagamento, como vai ser pago? De que forma o produtor vai sair, só quando ele receber? Houve para nós uma retomada, o que para a gente é uma invasão? Então, eu quero a reintegração de posse em no máximo 30 dias.
Outro ponto é que não abrimos mão do marco temporal, porque ele limita os conflitos. Veja o que ocorre hoje: havia até o julgamento do marco temporal áreas em conflitos em 18 estados, mas agora há ocupações em todo o Brasil. Há seis meses, havia 120 áreas em estudo; agora são 161. Quanto às áreas pretendidas, tínhamos 514 e hoje estamos com quase 700. E a Funai não informa esses números. Ninguém os tem. Falta clareza.
Vai melhorar para o produtor o fim da paridade de grãos para fins de recolhimento de ICMS?
Explicando o princípio da paridade, lá de trás, era assim: para cada tonelada de grãos exportada, tínhamos de manter a mesma quantidade no mercado interno. Na época, isso foi feito porque o Estado perderia arrecadação. Só que com o desenvolvimento que tivemos nos últimos anos, agora isso não existe mais.
No centro e no sul do Estado, sempre tivemos uma indústria de transformação dos cereais, mas na região nordeste de MS – Chapadão do Sul, Costa Rica, etc. –, tínhamos apenas duas grandes trades, a ADM e a Bungue. E elas repassaram o custo desse ICMS ao produtor. A cotação da saca de soja era, em média, de R$ 4 a menos e chegou a ter o pico de R$ 7 de diferença. Agora, os produtores dessas regiões terão um bom ganho na cotação, mas é claro que há uma diferença.
Qual a atuação da Famasul para reduzir a violência doméstica no campo?
A Famasul, em parceria com a promotoria, realiza palestras para mulheres no campo sobre violência doméstica, o que tem aumentado o número de denúncias. A iniciativa surgiu após uma mulher procurar ajuda em um evento da Famasul, e a organização percebeu a necessidade de agir. Tivemos um caso de uma mulher vítima de violência que, em uma das consultas médicas que oferecemos, pediu socorro à nossa equipe, pois foi o único lugar que ela se sentiu segura para fazer isso, porque estava longe dele [agressor].
PERFIL
Marcelo Bertoni
Graduado em Gestão Pública, vem de uma família tradicional de produtores rurais em Mato Grosso do Sul.
Foi membro do Movimento Nacional de Produtores (MNP) e presidente do Sindicato Rural de Bonito. Atualmente, preside a Federação da Agricultura e Pecuária de MS (Famasul). Em nível nacional, é coordenador da Comissão de Direito de Propriedade do Instituto Pensar Agro (IPA) e membro do Conselho Deliberativo da Apex Brasil.
Assine o Correio do Estado