Na última semana, o caso de um homem de 27 anos que torturou a namorada menor de idade e a manteve em cárcere causou indignação e teve grande repercussão em Mato Grosso do Sul. O irmão do acusado atribuiu o histórico de violência à dependência química e a um transtorno mental. Teriam sido 12 anos de uso de crack, e mais de 14 internações no período.
"Aos 13 anos, ele foi diagnosticado com uma mancha preta no cérebro, indicando esquizofrenia. Aos 15 começou a usar cocaína, e na sequência já começou a usar crack", contou com exclusividade ao Correio do Estado.
No entanto, nenhum diagnóstico de doença mental ou dependência química deve ser utilizado como justificativa para um crime tão brutal, defende a psicóloga e mestre em psicologia, Carlota Philippsen.
"Um diagnóstico de esquizofrenia, qualquer diagnóstico de transtorno mental ou qualquer uso de substâncias não justifica o que esse homem fez".
O caso veio à tona na última terça-feira (17), quando a adolescente foi resgatada na quitinete em que morava com o agressor. À polícia, a menina de 17 anos informou que foi torturada por cinco dias: teve os cabelos cortados por uma faca, foi queimada com ferro de passar e água quente, levou choques elétricos enquanto tomava banho e ainda teve as partes íntimas mutiladas.
Na manhã de quinta-feira (19), o suspeito foi preso. Ao lado do advogado, optou por não falar sobre o caso durante depoimento na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam).
Em conversa exclusiva com o Correio do Estado, a psicóloga Carlota Philippsen analisou o caso, e avaliou alguns dos comentários feitos nas redes sociais.
Qual o limite para culpabilizar uma dependência química e um transtorno mental?
Carlota Philippsen: A gente percebe, nesse caso, multifatores que estão envolvidos para a gente poder olhar para ele de uma maneira mais próxima do que realmente aconteceu.
Muitas pessoas fazem uso de substâncias, muitas pessoas têm diagnósticos, e isso não é uma justificativa para que elas façam esse tipo de coisa.
Não existe nada que diga que uma pessoa que tem um diagnóstico de esquizofrenia vai ser violenta ou não, que ela vai cometer crime ou não. Então o diagnóstico não deve ser o responsável. Ele deve entrar como mais um determinante para a gente entender o que é que vai fazer com essa pessoa.
De que forma a gente pode evitar generalizar o caso, para não atribuir transtornos mentais e a dependência química a perfis de violência?
C: Tem pessoas que não usam droga, não têm diagnósticos, e também cometem crimes muito bárbaros.
Quando a gente coloca "ah, mas é esquizofrenia, por isso que ele fez isso" é como se as pessoas que a gente tem por normal, não fossem capazes de cometer esse tipo de coisa.
A violência é produto da nossa sociedade.
Violência de gênero
A psicóloga avalia que, acima de todas as alegações, a adolescente foi vítima de uma violência de gênero.
C: Foi uma violência de um homem contra uma mulher, e eu acho que isso que, na verdade, deveria ser muito mais discutido do que se o homem tem esquizofrenia ou não.
Mesmo dentro dos transtornos mentais, mulheres e homens respondem de forma diferente, porque a gente vive em uma sociedade onde os homens e mulheres são socialmente compreendidos como diferentes.
Uma mulher esquizofrênica faria isso? Não, é muito difícil a gente ver.
Tem primeiro, a violência como produto social, que a gente tem muita dificuldade de olhar, porque aí a gente entende que é uma questão de todos nós, e que qualquer um é capaz de fazer prática violenta; e a violência de gênero, a violência masculina.
Mulheres são criadas para cuidar
A violência de gênero e a vulnerabilidade das mulheres ficam mais evidentes e fáceis de compreender quando analisamos a estrutura social em que estamos inseridos.
Philippsen aponta que as mulheres são criadas e vistas como figuras cuidadoras, e cita como exemplo o que ocorre em hospitais. Geralmente, quando o parceiro do sexo masculino adoece, a mulher permanece. No entanto, nota-se que muitas mulheres são abandonadas ao adoecer.
Uma pesquisa divulgada em abril deste ano pela Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) exemplifica bem o conceito apresentado pela psicóloga: sete em cada dez mulheres com câncer no Brasil são abandonadas durante o tratamento.
C: A gente vive em uma lógica onde mulheres são cuidadoras. Isso você consegue encontrar dados que comprovam. Quanto é a porcentagem de homens que ficam com esposas em hospitais? E a porcentagem de mulheres?
Existe uma coisa na nossa sociedade que nos coloca como cuidadoras. A mulher fica em casa cuidando dos filhos, a mulher tem que cuidar do marido. "Nossa, esse homem está tão magro, essa mulher não está cuidando dele", "olha, o homem tá mal vestido, cadê a mulher dele pra cuidar dele?".
O quanto que nossas garotas não reproduzem isso para serem aceitas? E aí o homem se aproveita disso. É uma coisa que todos nós estamos falando para essas garotas.
A diferença de idade entre o homem e a menor de idade era de 10 anos. Até que ponto nossas meninas são colocadas em posição de vulnerabilidade pela determinação que considera meninas maiores de 14 anos aptas a consentir?
C: O que que um cara tão mais velho quer com uma garota? A gente fica pensando nisso.
Eu trabalhei na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, e um grande enrosco era isso.
A maioridade aqui no Brasil é 18 anos, né? É 18 para dirigir, 18 para beber. Só que quando uma garota de 15 anos fala que consentiu se relacionar com um homem, a gente acha que ela pode consentir. Só que alguém acha que realmente uma pessoa menor de idade tem capacidade, vivência e estrutura pra decidir alguma coisa? E isso só acontece com garotas, porque a gente vê essa culpabilização.
O Neymar (31 anos), o menino Ney, '"não sabia o que estava fazendo", e quando é uma garota de 15 anos: "ah, mas ela já sabe o que ela está fazendo, né?", então a gente vê também esse tratamento desigual entre homens e mulheres.
"O que a gente está ensinando para as nossas garotas?"
O caso repercutiu, e nas redes sociais, comentários como esses podem ser encontrados:
"Essas meninas só ficam com 'noinha' dá nisso", escreveu uma leitora.
"Sabendo do histórico ainda foi se relacionar amorosamente com o cara.
Enquanto essas meninas não ser valorizarem, vamos nos deparar com esse tipo de notícia", comentou outro.
C: E aí, mais uma vez, a gente vê colocarem a culpa na vítima, pensam 'que menina burra', mas o que a gente está ensinando para as nossas garotas? Porque tem vários outros casos que a gente vê de mulheres que, quando você olha de longe, parece que elas se colocam em perigo. Mas o quanto nossa sociedade não diz para mulheres silenciarem quando são violentadas? A questão de que se o cara te bateu você mereceu, sofreu assédio porque estava bebendo...
Nós mulheres somos colocadas como transformadoras. "O cara ainda não achou a mulher certa, por isso ele está assim".
E isso está em todos os lugares: está na música, está na novela, você não precisa de muito para parar e ouvir os produtos culturais, o que que eles dizem.
Às margens
Muito se fala sobre o "abandono" da vítima, como o comentário abaixo:
"Com uma família dessa, quem precisa de inimigo? Uma semana na casa do namorado sem dar notícia e a família nem aí...", disse um seguidor.
Mas e o abandono do homem? Um rapaz que foi internado 14 vezes, possuía diagnóstico de um transtorno mental, e que saiu de uma clínica sem o apoio necessário?
C: As famílias de poder aquisitivo maior internam, e a pessoa tem todo um suporte, tem toda uma equipe. Pessoas de um poder aquisitivo mais baixo sequer muitas vezes entendem o que é [o transtorno], né?
É realmente muito difícil você lidar com alguém que tem um transtorno.
Tem alguns transtornos que a pessoa tem consciência que ela é portadora, porque ela tem uma vivência ali que faz com que ela entenda. Agora tem outros que não. E aí você olha em volta, o que é falado sobre isso? O que é que a gente discute?
Existe essa ideia de que o transtorno é uma coisa individual, e, na verdade, o transtorno é sempre uma coisa coletiva.
Inclusive, os delírios que a esquizofrenia produz na fase da psicose também são sociais. Hoje em dia, por exemplo, geralmente é aquele delírio de "eu estou sendo ouvido, eu estou sendo observado", por quê? Porque a gente está em uma sociedade extremamente tecnológica e existe microfone, existe câmera em qualquer lugar. Então, há 500 anos atrás isso nunca seria possível.
Existe uma ideia errada de "ah, a pessoa rompe com a realidade", mas não.
Só que é muito difícil para as famílias lidarem com isso. A gente não tem uma estrutura coletiva de cuidado, do entendimento do que seja um transtorno. A gente não tem nas escolas, a gente não tem no mercado de trabalho, a gente não tem um lugar na sociedade para essas pessoas, um lugar onde elas sejam acolhidas com a deficiência, com a peculiaridade delas.
A clínica errou em dar alta?
C: Eu já tenho muita crítica em relação ao formato de clínica de internação, e essa é uma questão muito complexa. Você tira a pessoa da sociedade, e como é que ela vai ter ferramenta? A droga é uma consequência, ela não é a causa dos problemas.
Tem gente que é viciado em jogo, tem gente que é viciado em compra. Então não é a substância. Existe uma relação que a gente tem com a forma como a sociedade está organizada hoje, com essa coisa do prazer imediato. A gente vive em uma sociedade imediatista, em uma sociedade que quer tudo 'pra ontem', que quer comprar. Você compra as coisas, você compra bem-estar, você compra Felicidade.
O quanto esse tratamento desse homem tem sido eficaz? Eu não digo que foi certo ou que foi errado [dar alta]. Eu acho que tudo estava errado. Pessoas que ficam indo e voltando para clínicas, e o quanto que essas clínicas ganham também?
O quanto que a gente lida de uma forma mais real? Porque quando a gente diz que o problema das drogas é do indivíduo, olha o tanto de indivíduos. Será que é do indivíduo? Será que a gente não consegue olhar em volta e falar assim: 'é muita gente para a gente achar que é culpa das pessoas'.
Aí as pessoas falam: "a clínica errou", "a família está errada", ou "a garota que está errada" e assim, é bem mais complexo do que isso.
Saúde, não segurança
Para a psicóloga, a forma com que o Brasil lida com a dependência química e com a saúde mental é equivocada, e acaba realmente deixando essa população - que já é vulnerável - às margens da sociedade.
C: O fato da gente só discutir sobre isso quando acontece uma barbaridade também diz muito.
Como é hoje a nossa política de saúde mental? O que acontece com a pessoa que recebe o diagnóstico? Que tipo de suporte essas pessoas têm? Que tipo de suporte a família tem?
A mesma coisa na questão das drogas. A gente tem um viés pela segurança pública aqui no Brasil, quando, na verdade, em qualquer outro lugar onde existam políticas que realmente são baseadas em em pesquisas científicas, é uma questão de saúde pública.
Drogas, pela perspectiva brasileira, é uma questão da justiça. Só que, pela perspectiva do entendimento das ciências humanas, da ciência médica, as drogas são um problema de saúde.
Então se torna muito difícil, um tabu, a gente discutir sobre essas questões. Existe um nível muito patológico de uso de droga, só que aqui a gente só olha no nível do crime, da proibição.
Você vê uma dificuldade das pessoas discutirem, porque "ah, a droga é proibida", tá, mas elas existem, elas estão aí, elas estão sendo usadas.
E aí quando acontece uma coisa bárbara dessa, a gente repercute essas discussões que a gente, enquanto sociedade, não costuma fazer, e de uma forma às vezes muito equivocada.


