Ao completar 124 anos, Campo Grande pode ser caracterizada como a cidade que é referência mundial no tratamento do pênfigo, mais conhecido como fogo selvagem.
O Hospital Adventista do Pênfigo completou 74 anos em março, e o que pouca gente sabe é que toda essa impressionante história da “cura” dessa doença, que matava 90% daqueles que eram acometidos por ela, começou com um pastor e uma pomada inicialmente usada contra sarna em cães e gatos.
A história do surgimento do hospital está umbilicalmente ligada ao pastor adventista Alfredo Barbosa de Souza, que nasceu em 28 de março de 1908, na região de Rio Brilhante e Nova Alvorada do Sul, e à sua esposa Áurea, dois anos mais nova e que nasceu na mesma região.
Embora fossem conterrâneos, conheceram-se em São Paulo, para onde foram para estudar em escolas adventistas, a partir de 1933. Depois de longos anos de estudos e demoradas viagens de trem nos períodos de férias, acabaram se casando, em janeiro de 1937.
Depois de oito anos de estudo, Alfredo foi ordenado pastor, e o casal foi destinado para trabalhar em cidades como Cuiabá, Corumbá e Campo Grande.
Cerca de sete anos depois de formado, quando trabalhavam em Corumbá, Áurea começou a perceber uma irritação na pele. Procuraram um médico, que diagnosticou um pequeno eczema, que sarou depois de passar uma pomada.
Meses depois, o problema ressurgiu e a pomada já não fazia mais efeito. O casal resolveu, então, deixar os quatro filhos aos cuidados de amigos da igreja em Corumbá e procurar um médico em Campo Grande, o que foi possível após viagem de trem que durou cerca de 15 horas.
No livro intitulado “O Tempo Não Pagou”, que relata a história do casal, escrito pelo médico Donaldo R. Christman há cerca de cinco décadas, Áurea dizia que a dor do fogo selvagem era “como se tivesse um ferro em brasa sobre meu estômago”, tamanho o sofrimento pela qual passam as vítimas dessa doença.
Em Campo Grande passaram por uma série de médicos, mas o problema só piorava e ela mal conseguia se locomover sozinha. No desespero, resolveram pegar o trem de volta a Corumbá e, de lá, partiram em busca de uma possível cura no meio da selva boliviana, onde havia notícias de águas termais milagrosas.
Na região de Roboré, em meio a indígenas e trabalhadores da estrada de ferro, acabaram sendo alvo de rejeição porque temiam que a doença fosse contagiosa. Além disso, ela contraiu malária, e Alfredo chegou a acreditar que teria de sepultar a esposa no meio da selva no país vizinho.
Porém, com a ajuda de voluntários, conseguiu retornar, e semanas depois foi mais uma vez em busca de águas com poderes curativos, em Águas de Lindóia, no Estado de São Paulo. O resultado também foi frustrante, e Alfredo acabou levando a esposa para São Paulo, onde já havia um hospital para vítimas do fogo selvagem.
Os médicos desse hospital, porém, deram dois meses de vida para a mulher, pois havia um consenso de que o fogo selvagem era uma doença incurável e o máximo que poderia ser feito era reduzir o sofrimento das vítimas.
O pastor Alfredo, então, retornou a Campo Grande em busca de dinheiro para bancar as despesas com internação e para rever rapidamente os filhos. Familiares de Áurea haviam ficado de revender parte do rebanho de gado e repassar uma herança que cabia à mulher.
Negra entre os brancos
Mas, antes que fosse para a região de Nova Alvorada do Sul em busca dessa herança, como se tivesse sido conduzido por uma força superior, acabou se deparando com uma cena que lhe chamou a atenção próximo à estação ferroviária de Campo Grande.
"Roupas esfarrapadas e sujas, tinha os pés descalços, um quadro perfeito de um homem perto da extinção por causa do álcool”
-Pastor Alfredo Barbosa, narrando encontro com o Isidoro Jamar
“Mas o que é isto? Uma senhora de cor andando com pessoas brancas? É muito estranho. As pessoas que têm carro geralmente não levam as empregadas junto”, raciocinou o pastor Alfredo, conforme o livro “O Tempo Não Apagou”.
Ele se aproximou e percebeu que aquela não era a cor da pele da mulher, mas que ela estava com algum produto no corpo. Curioso, perguntou o que havia acontecido, ao que o motorista (ou um anjo, deve ter pensado) lhe deu a resposta: “Ela teve fogo selvagem, mas agora está curada”.
Incrédulo, mas extremamente interessado, passou a fazer uma infinidade de perguntas até descobrir que um homem que fazia uma espécie de “pomada milagrosa” à base de piche fora trazido de Porto Murtinho para Sidrolândia há cerca de oito meses e havia curado a mulher de pele escura que acabara de encontrar.
E como este médico do campo agora morava em Sidrolândia, não descansou até encontrá-lo. Antes disso, descobriu que ele chegou a cursar Medicina e havia sido farmacêutico em Buenos Aires.
Mas, por conta de alguma desilusão amorosa ou algum outro problema, teve de fugir da Argentina e veio parar aqui no Estado (existe suspeita de que fosse fugitivo de guerra alemão e que tivesse amplos conhecimentos de botânica, medicina e farmácia antes de vir para a América).
Quando Alfredo finalmente chegou a Sidrolândia, encontrou uma espécie de barraco e várias crianças nuas brincando em meio à lama e uma cama sem colchão no meio do barraco. Ao perguntar sobre Isidoro Jamar, a paraguaia que o recebeu informou que ele estava no bar.
Isodoro Jamar criou a pomada para doença que era tida como fatal. Foto: M.VNa sequência, o pastor adventista de costumes rígidos foi ao bar e encontrou um homem com as “roupas esfarrapadas e sujas, tinha os pés descalços, um quadro perfeito de um homem perto da extinção por causa do álcool”. De tão bêbado, mal conseguia falar, relata o autor do livro que conta a história de Alfredo e Áurea.
Alfredo o levou para casa e conseguiu que ficasse sem beber por tempo suficiente para que combinasse o tratamento da esposa. Jamar queria que ela fosse levada até Sidrolândia, mas o pastor explicou que estava em São Paulo e não teria condições de fazer a viagem.
Depois de muita insistência e pagamento de 500 cruzeiros (tudo o que tinha sobrado), conseguiu comprar dois litros de um concentrado à base de piche, formando uma pomada misturada com óleo de linhaça, e oito litros de um fortificante para ser tomado oralmente.
Apesar da euforia e da pressa para levar o remédio até São Paulo, o pastor Alfredo, que era formado em Teologia em São Paulo, teve a iniciativa de tirar uma foto de seu médico e conseguiu um fotógrafo em Sidrolândia que fez o serviço gratuitamente. E é essa a única imagem do homem bêbado ao qual é atribuída a “cura” do fogo selvagem.
O pastor chegou a São Paulo antes do prazo de dois meses que os médicos haviam dado de sobrevida à sua esposa, que já estava com o rosto em carne viva, e logo começou o tratamento com o piche milagroso.
Depois da segunda aplicação ela já estava melhor e dizia estar com fome, algo que há meses não sabia o que era. Menos de uma semana depois, já estava até varrendo seus alojamentos, tamanho o revigoramento. Alfredo conseguiu até dinheiro para buscar os quatro filhos em Corumbá (Nelson, Gilda, Gília e Noemi) e levá-los para ver a mãe, que estava distante havia meses.
O quinto filho do casal (Alfredo), nasceria somente anos depois, algo considerado muito raro para uma mulher que teve fogo selvagem e que fora submetida ao tratamento à base de piche. Entre o início da doença e a cura, passaram-se em torno de dois anos.
Corina
Depois de alguns dias, Alfredo retornou a Campo Grande e, enquanto fazia os preparativos para trazer a mulher e os filhos, alugou um quarto na casa da família Baís (na Avenida Afonso Pena) e retomou alguns trabalhos como evangelizador.
Em uma dessas andanças, encontrou uma menina chamada Corina, que estava com o corpo tomado por bolhas iguais às que quase levaram sua esposa à morte. A menina era usada por uma pedinte para comover campo-grandenses a lhe entregarem esmolas.
Pastor Alfredo Barbosa e Corina, menina que foi a 1ª paciente. Foto: M.VComo cristão fervoroso e profundo conhecedor dos ensinamentos bíblicos do Novo Testamento, o pastor então entendeu que a omissão diante dessa situação seria o pior dos pecados que poderia cometer.
Ele resgatou a menina, de 13 anos, conseguiu abrigá-la em um barraco próximo à região onde atualmente fica o Cemitério Santo Antônio e começou a tratá-la.
Era 1947, e Corina havia sido a primeira paciente penfigosa a ser tratada pelo pastor Barbosa. Logo depois, chegou a informação de que havia uma mulher abandonada à beira de uma estrada a três quilômetros de Campo Grande. Ela foi a segunda paciente.
Dias depois, um policial de Rochedo obrigou um caminhoneiro a trazer um idoso tomado por fogo selvagem para que fosse entregue aos adventistas. Agora já eram três os doentes.
A notícia da cura havia se espalhado, e agora não tinha mais volta, pois o nome dos adventistas poderia ser jogado na lata do lixo caso não passassem a tratar dos doentes.
Como ainda havia a suspeita de que a doença pudesse ser contagiosa, os religiosos conseguiram um terreno longe da área urbana, doado pela família Baís, e começaram a tratar as pessoas no local onde hoje funciona a sede do hospital, na saída para Sidrolândia, sob barracos de palha praticamente no meio do mato.
A fórmula
Cerca de dois anos depois de acolher Corina, foi ativado oficialmente o hospital, já com ajuda de profissionais da saúde, mas ainda havia um grave problema: Isidoro Jamar continuava bebendo e estava muito doente. Se ele morresse sem passar a fórmula da pomada, voltaria tudo à estaca zero.
Depois de muita insistência e pregação bíblica, o moribundo alcoólatra finalmente pediu para que seus interlocutores anotassem como misturar “óleo, enxofre, piche, ácido bórico, óxido de zinco, cal, etc. Já curei 48 casos com ele e agora estou dando a vocês. Que Deus os abençoe ao usá-lo para ajudar a humanidade”, teria dito Jamar, conforme o livro “O Tempo Não Apagou”.
Dez anos depois, já haviam sido tratadas 478 pessoas. Dessas, 167 foram declaradas curadas e 108 melhoraram significativamente. Outros tantos continuaram sofrendo 10 ou mais anos, e apenas 13 casos de morte foram registrados nesse período.
Antes disso, porém, o pastor Alfredo Barbosa já havia sido transferido pelo comando da igreja para evangelizar em Santa Catarina. Áurea, ao contrário de muitos outros pacientes, nunca mais apresentou sintomas da doença e viu seus cinco filhos ficarem adultos e encherem sua casa de netos.
Em homenagem a Isidoro Jamar, a pomada foi batizada de jamarsan. Com o passar dos anos, ela foi sendo modificada e aperfeiçoada, e outras 35 fórmulas foram criadas a partir dela.
As décadas passaram e a medicina evoluiu, mas Campo Grande, por causa do hospital, continua sendo referência para o mundo inteiro no que se refere ao tratamento de fogo selvagem.




