Um doutor em Economia que nunca viu a economia – uma ciência social aplicada – descolada dos outros fenômenos sociais. Assim é o professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Ido Michels. Atualmente morando em Brasília (DF), onde está cedido à Câmara dos Deputados para ser o chefe de gabinete do deputado federal Vander Loubet (PT), Michels continua estudando profundamente os movimentos da sociedade mesmo tendo se aposentado da universidade neste ano.
O economista lista alguns dos principais do grupo a que está ligado politicamente: desvencilhar-se do fenômeno da “lacração” e do politicamente correto e entender melhor os fenômenos sociais, como o anseio de parte da sociedade para se ter mais disciplina no ambiente escolar.
Sobre os principais desafios do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ele acredita que o ponto central está no enfrentamento da pouca efetividade das agências reguladoras, que permitem que serviços de péssima qualidade e lesivos ao consumidor, segundo ele, continuem sendo prestados com a conivência do poder público.
Ido Michels - perfil
É professor da UFMS, economista formado pela UFSC, mestre em Economia Rural pela UFPB e doutor e pós-doutor em Geografia Humana pela USP. Autor de artigos e livros sobre cadeias produtivas do Brasil, é assessor do deputado federal Vander Loubet (PT).
O Lula venceu as eleições no 2º turno de 2022 em uma frente ampla e com um discurso de reconciliação. Isso, porém, parece não ser possível, ainda que exista esforços para tanto. Existe uma deterioração do contrato social?
Existe uma frase de Antonio Gramsci que diz que uma crise consiste no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. E nessa, digamos, guerra, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece. Eu acredito ainda que nós ainda somos reflexo da crise de 2013, que a Dilma [Roussef, ex-presidente], quando estava no governo, não captou. É o que Marcos Nobre, que é um cientista político que nós temos no Brasil, escreveu em seu livro “A Crise da Democracia”, que as manifestações daquela época foram de autônomos, pessoas sem partidos, alguns movimentos, que deram origem a uma crise profunda que levou ao impeachment de Dilma. E nesse contexto, eu entendo que é um equívoco o PT enxergar o impedimento de Dilma como só um golpe, o que é se vitimizar, porque esses processos são jurídicos e políticos.
Eu entendo que a crise de 2013 começou com protestos que geraram uma ruptura na sociedade brasileira, que permanece até hoje, passando pelo governo de Michel Temer, pela eleição de Jair Bolsonaro e pelo governo que temos aí hoje. As instituições ainda estão processando os efeitos daquela crise, como o fato recente de o Senado discutir a delimitação do espaço do Supremo Tribunal Federal [STF] na tripartição dos Poderes, ao passo que o mesmo STF foi decisivo na eleição de Lula para presidente.
Essa crise social também é econômica? Nos últimos 10 anos, foram dois períodos de recessão e baixo crescimento, sem projetos nem planos a longo prazo.
Há um debate que é necessário: um marco que houve na transição para o governo de Fernando Henrique Cardoso [FHC], nos anos 1990, que foi fundamental para a história do Brasil, foi o Plano Real, em 1994, a estabilização da economia, que resultou na reeleição dele, nas privatizações e, depois, nos outros mandatos do Lula. Foi a estabilização da era FHC que permitiu um ciclo de desenvolvimento nos governos Lula 1 e Lula 2, que souberam dar continuidade à estabilidade, com Henrique Meireles no Banco Central, por exemplo.
Lula colocou na pauta que um ciclo de investimento deve ser inclusivo, e o FHC entrou com a estabilidade econômica. Agora, eu entendo que o governo Dilma, na questão econômica, tomou decisões que levaram a uma paralisação desse ciclo que poderíamos ter de desenvolvimento. Houve erros na política econômica dela, e o próprio Lula, a posteriori, reconhece isso.
Um exemplo disso é que o próprio Fernando Haddad, em uma entrevista em que fala sobre a crise de 2013, para a revista Piauí, afirma que uma das responsáveis foi a Dilma, por ela não ter dado subsídio para ele evitar o aumento das passagens de ônibus naquela ocasião.
Agora, sobre a questão econômica, entendo que há uma outra complexidade ligada à globalização, um fenômeno que é brasileiro e mundial: ela é inclusiva, porque inclui muitas pessoas ao mesmo tempo. Ou seja, faz com que mais pessoas possam comprar um iPhone, viajar, proporciona serviços como iFood e Uber, por exemplo – e nesse aspecto ela inclui.
Mas ao mesmo tempo há um movimento de exclusão, em que um número igualmente muito grande de pessoas não se sente parte desse processo. E isso ocorre no mundo todo. E é nesse contexto que surge um movimento político que cobra a fatura da globalização do emprego. E qual a resposta para isso? Eu não tenho essa resposta.
É preciso que se entenda que os países têm de conciliar valores de mercado e valores de estado. Por isso, acredito que no Brasil, especificamente, há um lado da privatização – e isso é uma grande responsabilidade nossa, do PT – em que nós privatizamos no tempo que havia que privatizar, e o problema é que as agências de regulação não entregaram o que deveriam entregar.
Então você acredita que o próximo nó a ser desatado é o das agências reguladoras?
Eu entendo que temos coisas que são um avanço e que o Estado não tem que cuidar mesmo, mas tem coisas que o Estado não pode deixar solto, como o que está em debate sobre a questão energética. Mas eu acho, por exemplo, a telefonia no Brasil um horror.
Há dois anos, viajei ao Egito e entrei em certo momento 100 km deserto adentro – e lá tinha sinal de telefone. Por aqui, muitas vezes estamos em capitais brasileiras e o prometido e contratado 5G não funciona. E não dá para vir parte da esquerda e dizer que o Estado tem que voltar. Não. As agências têm de entregar o que prometeram: fiscalizar.
Mas e o custo político de fazer as agências reguladoras funcionarem?
Isso é uma coisa que o Congresso começou a ter algumas manifestações nesse sentido, ainda no governo Bolsonaro. Porque é necessário rever o papel das agências. Eu estou dizendo que esse é o desafio do governo Lula, e para mim, um desafio central e que seria revolucionário. Elas têm de dar satisfação à sociedade, dizer o que estão fazendo e por quê.
Quando contrato um serviço 5G na telefonia e não recebo nem sequer 3G, é a mesma coisa que se comprasse um 1 kg de carne e levasse para casa uns 700 g ou meio quilo.
Pegando o caso das companhias aéreas. Se você enxergar alguma justificativa plausível para eu pagar R$ 600 em uma passagem e na sequência, que seja com um ou dois meses de antecedência, cancelar o meu bilhete e não ter o dinheiro devolvido, me procure. Uma coisa é eu cancelar uma viagem em cima da hora, outra coisa é um cancelamento com antecedência. Por isso digo que estamos sendo lesados em todas as áreas reguladas pelas agências.
E esse mesmo controle social que você defende para as agências e concessionárias também têm de valer para o Estado?
Entendo que o Estado tem de atuar em muitos setores, porque ele é o estimulador de investimentos nesses setores. Mas ele também tem de ser controlado. É outro lugar que precisa de uma revolução em sua gestão.
Sou professor universitário aposentado, tenho uma relação com ele [Estado] há 40 anos desde que estudei em uma universidade pública, fiz mestrado e doutorado e também sou servidor público. Acredito que o Estado deve ter um acompanhamento efetivo das entregas que fiz à sociedade.
Então você defende uma reforma administrativa?
Eu acredito que a reforma é necessária e deve ocorrer dentro de um conceito do que as pessoas realmente a associam como tal. Mas dizem: “Ah, vai tirar a estabilidade”. A discussão não está aí. A estabilidade é parte dela. Entendo que como servidor público, agora da Câmara dos Deputados, eu tenho esse crachá, que tem um número. Aqui atendo prefeitos, vereadores, e este é meu número de ponto. Acredito que qualquer pessoa que eu atendo deveria ter o direito de atribuir uma nota ao meu atendimento, assim como fazemos com Uber, iFood ou 99. Em muitos momentos, o serviço público serve mais à engrenagem do aparelho estatal do que à sociedade.
Eu vivi isso na pele. Eu tinha um processo de aposentadoria em que o INSS [Instituto Nacional da Seguridade Social] levou 10 anos para reconhecer que eu sou eu. Queria me aposentar e juntei à contagem os 10 anos de carteira assinada que tive antes de ingressar no serviço público, e houve um burocrata qualquer que duvidou que eu tivesse esse tempo e a anotação na carteira. Eu recorri às instâncias do INSS, fiquei muito tempo sem resposta, até que meu processo trocou de servidor responsável e uma outra pessoa verificou que estava tudo ok.
Esse é o Estado que não funciona bem. O Estado que funciona muito bem é o aparelho estatal para arrecadar.
Mas todo esse debate sobre o papel do Estado parece ter ficado meio de lado hoje, em tempos de redes sociais. Você acredita que uma necessidade constante de “lacração” dificulta debates de temas mais abrangentes?
Sim, existe, sim, essa necessidade de “lacração” e, também, uma patrulha que define o que é politicamente correto ou não. E isso faz com que a gente deixe de debater conteúdos importantes e perca oportunidade de se posicionar nos debates. Por exemplo: o PT tem muita proximidade com os movimentos identitários. Eu sou um crítico que acho o identitarismo uma área de “lacração”. As causas do povo negro, dos indígenas, das mulheres, dos jovens, dos LGBTQIA+ são importantes. Mas as causas identitárias são pautas que não são as causas da sociedade em sua totalidade. Repito, elas são importantes, mas foram transformadas por um segmento em uma questão essencial da sociedade.
Quanto à “lacração” e ao politicamente correto, que estou dizendo que é a mesma coisa, se estou dizendo algo a meu grupo social e sou patrulhado, eu não dou a menor importância.
E se o outro lado utilizar o termo “lugar de fala”, você considera que ele interdita o debate?
Considero o lugar de fala importante, mas ele não é único. Se o lugar de fala fosse o único critério de um debate, não existiria [Sigmund] Freud, não existiria [Karl] Marx, não existiria [Albert] Einstein, não existiriam os grandes pensadores da humanidade. E, na política da lacração e do cancelamento, todos os músicos clássicos da humanidade seriam cancelados, porque, em sua época, todos eram de uma elite e reproduziam valores de sua época. Então, [se eu me preocupar com o cancelamento] não consigo mais fazer nada. Há um autor, Antonio Risério, que fala sobre o relativismo pós-moderno e a esquerda identitária. E ele diz que essa esquerda identitária é tão fascista quanto a direita. Ela “lacra” porque ela quer dizer o que é certo e o que é errado. Ela não dá liberdade de expressão à sociedade.
Neste contexto, qual o papel da educação? Você considera que esta liberdade de expressão potencializada pelas redes veio rápido demais e sem uma base educacional de massa?
Recentemente, tive duas experiências no que diz respeito à educação. Uma amiga daqui da UnB [Universidade de Brasília], que era daí de Mato Grosso do Sul e que foi fazer um curso de inglês de curta duração nos Estados Unidos. Era uma cidade pequena, e ela me disse que a disciplina na sala de aula fazia a diferença. Lá a aula começa às 9h. Se o aluno chegou às 9h01min, recebe 25% de uma falta. Se o atraso se repetir por quatro vezes, completa-se uma falta. Telefone celular é guardado desligado ou fica no silencioso na bolsa e ninguém usa na aula. E por aqui nós não conseguimos fazer esse diálogo. Um pouco que a “lacração” e o politicamente correto interdita este debate. E eu entendo que o ensino brasileiro não faça o debate, porque não é um ensino que dá disciplina, porque para estudar é preciso disciplina. Para escrever um livro, para editar um jornal é necessário ter disciplina. E essa minha amiga dá aula na UnB e diz que, de cada 50 alunos dela, aproveitam-se 3, porque estão todos distraídos. E daí o bolsonarismo vem com a proposta do colégio militar, e eles não estão errados.
Hoje a disciplina é difícil de ser dada nas casas porque temos um componente psíquico que é muito transformador: os filhos são os porta-vozes dos pais no contato deles com a sociedade e no consumo. São eles que, por exemplo, orientam o que têm de comprar, uma televisão, o modelo de telefone...
E a outra parte que eu não entendo porque não usamos é a transformação por meio das tecnologias. Eu entendo que o professor deveria ser recapacitado tecnologicamente a cada três anos, na rede pública ou privada. Hoje as linguagens de transmissão do conhecimento vão muito além da linguagem de transmissão histórica tradicional. E não estou falando em dar aula a distância, mas saber tornar uma aula mais atrativa.
E em termos de conteúdo?
Em termos de conteúdo, eu entendo que não seria um problema. Acho que o problema é a forma da transmissão do conteúdo. E ainda haverá necessidade de o aluno sentar a bunda na cadeira e ler um livro. E daí esquece celular, esquece tudo. Porque o cara lendo a Wikipédia e lendo post no Facebook, né, do cancelamento e seja lá o que for, não será educado em nada. Por isso a situação em que estamos hoje: a pessoa nunca nem leu qualquer artigo da Constituição e se dá o direito de ir na rede social opinar. Eu acho isso uma grande vantagem porque ele pode dar a opinião dele, mas eu acho isso uma grande coisa que nos leva a uma platitude, porque ele pode dar uma opinião sobre qualquer coisa sem nunca ter lido nada. Esse é mais um desafio.
Como analisa a evolução econômica de Mato Grosso do Sul nos últimos 20 anos?
Acredito que Mato Grosso do Sul teve sorte que todos os governantes não romperam com políticas de Estado. Zeca do PT atuou para estabilizar as finanças de MS, André Puccinelli, mesmo tentando impor no Estado a mesma centralização que aplicava na Prefeitura de Campo Grande, também fez um bom governo. Já Reinaldo Azambuja fez um bom governo, e começou uma descentralização muito importante, que fortaleceu os municípios. Já Eduardo Riedel estabelece um marco importantíssimo para a história do Estado, pois é da primeira geração que se preparou tecnicamente e academicamente para governar Mato Grosso do Sul.
Quanto aos investimentos privados que vieram nos últimos anos, o Estado soube aproveitar as vantagens comparativas, que eu explico: o processo decorre do encarecimento das terras em estados vizinhos, como São Paulo, e depois com investimentos na cana-de-açúcar na região leste do Estado –alguns não deram muito certo – e a silvicultura. Por que falamos do conceito de vantagem comparativa? Porque para uma grande empresa de celulose é mais vantajoso se instalar em uma região mais próxima de portos e ferrovias e onde a terra, em termos de preço, não enfrenta a concorrência de outras culturas.




