A pedido do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, três policiais do Batalhão de Choque envolvidos na morte Ronaldo da Silva Pereira Júnior, de 30 anos, no dia 9 de janeiro deste ano no Portal Caiobá, em Campo Grande, podem ser submetidos a júri popular.
Depois de analisar o inquérito promovido pelo comando a Polícia Militar que inocentou os policiais, o promotor Kristiam Gomes Simões entendeu que o caso não pode ser analisado pela Auditoria Militar e por isso está sendo encaminhado para a Justiça comum.
Naquela data, conforme o inquérito militar anexado à apuração do Ministério Público à qual o Correio do Estado teve acesso, três policiais do Choque teriam flagrado, antes do amanhecer do dia, uma troca de agressões entre um casal.
Em determinado momento, segundo depoimento dos policiais, a mulher empurrou o homem (Ronaldo) e logo na sequência ele sacou uma arma e fez menção de que poderia disparar contra ela.
Escondido em um terreno baldio, um dos PMs (os nomes dos policiais serão preservados até que seja decidido se serão ou não levados a júri) fez dois disparos contra o homem armado para evitar um possível assassinato.
Os disparos, conforme os depoimentos, foram feitos com um fuzil 5.56 milímetros e a uma distância de cerca de 50 metros. Os dois tiros acertaram o peito do homem. Menos de um palmo separou o primeiro do segundo disparo, algo digno de um sniper (atirador de elite), levando em consideração a escuridão e a significativa distância que separava o atirador do alvo.
Sem os aparelhos de pontaria usados no dia 9 de janeiro, o fulil utilizado para atingir Ronaldo foi encaminhado à Justiça comumO fuzil estava equipado com dois “aparelhos de pontaria acoplados aos seus trilhos”, conforme relatou a perícia ao receber a arma dos policiais. Estes aparelhos de mira, porém, foram devolvidos à PM.
Conforme imagens da perícia também anexadas ao inquérito, as duas balas de fuzil saíram pelas costas, praticamente no mesmo lugar, mas mais abaixo do local em que entraram, indicando que o atirador estivesse em um local mais alto que o alvo.
Os disparos, segundo eles revelaram aos seus superiores, foram feitos sem qualquer alerta para que Ronaldo se rendesse. Isso, segundo os policiais, porque a distância era grande e havia urgência na intervenção para evitar um possível assassinato da mulher.
Mesmo atingido com dos tiros transfixiantes de fuzil, Ronaldo conseguiu correr cerca de 30 metros, entrou em sua casa, trancou o portão e se escondeu no banheiro. Os policiais foram ao seu encalço, arrombaram a casa, prenderam o homem e providenciaram sua remoção para o Hospital Regional, onde acabou morrendo cerca de seis horas depois.
Do lado de fora da casa, segundo o inquérito da PM, foi encontra a pistola 9 milímetros que estava sendo utilizada por Ronaldo. Ela estava com as 15 munições intactas. Conforme imagem anexada à documentação, curiosamente a arma foi encontrada exatamente em cima de uma mancha de sangue na calçada da casa onde Ronaldo se refugiou, como se ele a tivesse perdido durante fuga.
Em tese, o sangue de Ronaldo na pistola serve como evidência judicial de que a arma estava em seu poder. E, sendo assim, reforça a tese de que os disparos dos policiais eram necessários e urgentes.
Trata-se de uma pistola com numeração raspada, o que dificulta a descoberta de seu proprietário original ou legal. Em seus depoimentos, os três PMs revelaram que nenhum disparo foi feito com a pistola naquela cena do crime.
Durante o inquérito militar, a mãe de Ronaldo prestou depoimento à PM e ela disse nunca ter visto armas dentro de casa ou em poder do filho, mas, segundo o inquérito, ela admitiu que Ronaldo mostrava armas no celular. Além dos policiais, ela foi a única testemunha ouvida no inquérito da PM.
TESTEMUNHA CHAVE
A mulher que supostamente foi salva em decorrência da habilidade de um subtenente no manuseio do fuzil nunca foi encontrada nem ouvida. Conforme declarações dos três integrantes do Choque, a prioridade naquele momento era prender o agressor e depois providenciar sua transferência para o hospital.
E, em meio a essa correria, a mulher sumiu. Indagados se pelo menos chegaram a tomar conhecimento de seu nome, o atirador e os outros policiais responderam que não. Os responsáveis pelo inquérito também não informam se tentaram localizar esta mulher para confirmar ou desmentir a versão dos policiais e encerraram a investigação com a conclusão de que os PMs agiram dentro da legalidade e dos protocolos da corporação.
O subtenente responsável pelos disparos tem 21 anos de experiência na PM e em sua ficha ele é descrito como tendo comportamento excepcional (o melhor possível), com 79 elogios e nenhuma punição.
NARCOTRÁFICO
Naquela noite de 9 de janeiro ele e outros três colegas faziam rondas de moto na região do Caiobá quando receberam a informação de que em determinado local havia comércio de drogas. Três deles foram a pé para tentar surpreender os traficantes, já que eles fugiriam caso vissem as motos, conforme informa o inquérito. O outro ficou cuidando dos veículos.
E em meio a essa tentativa de surpreender os traficantes é que se depararam com a briga de casal e o mais experiente deles fez os disparos.
Por estarem a pé, acionaram uma viatura da Rotac para levar Ronaldo ao hospital. A viatura chegou antes do Samu, que havia sido chamado pelo irmão de Ronaldo. Os disparos ocorreram por volta das 04:20 da madrugada, quando ainda estava escuro. A morte foi constatada pelas 10:45 horas.
No dia da morte, a PM informou que contra Ronaldo, conhecido como “Bodinho Negão”, havia dois mandados de prisão em aberto e uma medida protetiva. Além disso, que ele acumula passagens por dois estupros, sequestro e cárcere privado, cinco roubos e uma tentativa de roubo.
Em sua ficha criminal também apareciam mais de 10 passagens por violência doméstica, tráfico de drogas, ameaça, extorsão, associação criminosa e posse ilegal de arma de fogo de uso restrito. No inquérito, porém, nenhuma destas informações aparece.
JUSTIÇA COMUM
Ao requerer que o caso seja levado a algum juiz do tribunal do júri, o promotor alega que mortes provocadas por PMs em que as vítimas sejam civis não podem ser julgadas pelo juízo militar. Por conta disso, o MP “pugna pelo reconhecimento da incompetência deste Juízo da Auditoria Militar para processar e julgar o fato objeto do presente Inquérito Policial Militar, com a consequente remessa dos autos à Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Campo Grande/MS, a quem compete a devida apreciação da matéria”.
Em sua argumentação o promotor não entra no mérito do caso, mas deixa claro que casos parecidos devem ser levados à justiça comum “ainda que eventual reconhecimento de excludente de ilicitude venha a ocorrer, a competência para deliberar sobre o arquivamento do feito é da Justiça Comum”.
Em decisão assinada no dia 25 de junho, o juiz Alexandre Antunes da Silva, da Auditoria Militar, acatou o argumento do MP e encaminhou o caso à Justiça Estadual comum. Além disso, mandou que armas e documentos relativos à investigação sejam entregues à Vara que ficar responsável pelo julgamento, caso este realmente venha a ocorrer.
Desde o começo do ano, segundo dados da Sejusp, 45 pessoas, todas civis, morreram nos chamados confrontos com policiais em Mato Grosso do Sul. Desde o começo de 2023, quando ocorreu uma disparada deste tipo de registros no Estado, são 262 mortes em confrontos e até agora não se tem notícia de que realização de júri popular.
O Correio do Estado procurou o Ministério Público em busca de informações para saber se este é um caso isolado ou se é o procedimento padrão em todas as investigações relativas aos confrontos.
Em resposta, o MP respondeu que "quanto ao caso específico mencionado, referente a um procedimento que tramita na 24ª Promotoria de Justiça, o MPMS irá se manifestar exclusivamente nos autos, em respeito ao princípio da legalidade e ao dever de cautela diante de investigações em andamento".
Além disso, informou que "conforme entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), com base no art. 125, §4º da Constituição Federal, no art. 9º do Código Penal Militar e no art. 82 do Código de Processo Penal Militar, crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares contra civis, ainda que em serviço, são de competência da Justiça Comum, devendo ser julgados pelo Tribunal do Júri".


