Referência na luta pelos direitos indígenas, o advogado, antropólogo e coordenador do Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Luiz Henrique Eloy Amado, ou Eloy Terena, salientou que a pandemia de Covid-19 evidenciou o descompromisso do governo federal com as comunidades indígenas em todo o País.
Eloy, que nasceu em uma aldeia da etnia terena em Aquidauana, foi o responsável de levar ao Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, ação proposta em junho de 2020 pelo Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com o objetivo de combater omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia de Covid-19 e cobrar providências por conta do risco de genocídio de diversas etnias.
A decisão favorável do Supremo foi recebida como uma conquista histórica, e, pela primeira vez, um advogado indígena venceu uma ação de jurisdição constitucional na Corte.
Ao Correio do Estado, Eloy pontuou que o movimento indígena vem fortemente incentivando a participação política de seus membros e comunidades.
“Nós precisamos ocupar a política partidária para ocupar o poder, acabar com a política da morte e levar a Brasília a política da vida originária”, reiterou.
Luiz Henrique Eloy Amado - Perfil
Conhecido como Eloy Terena, o advogado indígena possui ampla atuação no Supremo Tribunal Federal (STF) e em organismos internacionais.
Atua como coordenador do Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
É doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Possui pós-doutorado em Antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris.
No domingo, o Ministério da Saúde declarou o fim da emergência sanitária imposta pela pandemia de Covid-19. Após o senhor garantir no STF que o governo federal adotasse medidas de proteção dos povos indígenas contra o coronavírus, como você avalia o combate à doença nos últimos dois anos nas aldeias? Para o senhor, a ação de jurisdição constitucional na Corte teve o seu objetivo cumprido?
Podemos dizer que o Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil [Apib] marcou a história constitucional brasileira por ser reconhecida como uma entidade representativa de classe de âmbito nacional.
Em decisão monocrática, posteriormente referendada pelo Plenário do STF por unanimidade, o ministro relator Luís Roberto Barroso reconheceu a Apib como legitimada ativa para a propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental [ADPF].
Passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição, esta foi a primeira vez que os povos indígenas foram ao Supremo, em nome próprio, defendendo direito próprio, por meio de advogados próprios, propondo uma ação de jurisdição constitucional.
Para além de conseguirmos derrubar, no âmbito da ADPF, diversos atos normativos do governo que eram prejudiciais aos povos indígenas, foram proferidas, ainda, diversas decisões promissoras.
No entanto, as barreiras sanitárias implementadas foram escassas e insuficientes, houve diversas versões mal elaboradas do Plano contra a Covid-19, não houve um diálogo intercultural efetivo, e a vacinação entre os povos indígenas segue lenta e insuficiente, especialmente no que tange à dose de reforço e em relação aos adolescentes indígenas.
O porcentual de cobertura vacinal nas aldeias indígenas ficou abaixo da meta preconizada pela Secretaria de Estado de Saúde. Para o senhor, faltou investimento na disseminação da informação nas comunidades? O que motivou essa diferença na aplicação das doses nas aldeias e na cidade?
Mesmo com a população indígena fazendo parte do grupo prioritário, o Ministério da Saúde não tem conseguido competir com as fake news, a influência de igrejas evangélicas e o discurso antivacina do próprio presidente Jair Bolsonaro.
Ainda que diversas organizações indígenas, como a Apib, tenham realizado campanhas estimulando a vacinação, sem a iniciativa do poder público, a desinformação saiu vitoriosa. Nesse vácuo de informação técnica, invasores de terras indígenas também ganharam espaço e prejudicaram a vacinação.
Por fim, não podemos esquecer do fato de que a Secretaria Especial de Saúde Indígena [Sesai] primeiramente excluiu do plano de vacinação contra a Covid-19 os indígenas que vivem em terras não homologadas, como é o caso de algumas retomadas localizadas na Terra Indígena Taunay, que, mesmo em estado avançado de demarcação, não entrou na cobertura de imunização.
Qual foi o impacto da Covid-19 nas comunidades indígenas e como foi para as aldeias assimilarem a gravidade da doença?
Esta pandemia escancarou problemas estruturais relacionados aos povos e comunidades indígenas no Brasil, a exemplo das questões ligadas à proteção territorial, ao atendimento à saúde indígena em diversos contextos territoriais e à formulação de políticas públicas identitárias.
Também ficaram expostas as fragilidades que enfrentam há anos as equipes de atenção primária à saúde [APS] do Sistema Único de Saúde [SUS] e, mais fortemente, as do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena [Sasisus], entre elas: falta de infraestrutura adequada, reduzido estoque de insumos e medicamentos, insuficiência de equipamentos de proteção individual [EPI], alta rotatividade de profissionais, entre outros.
Diante de todos esses problemas, encontra-se o fato de que infecções respiratórias sempre apresentaram altos índices de mortalidade entre os indígenas, se comparados aos demais grupos.
Desta maneira, os efeitos da pandemia somam-se às circunstâncias históricas e peculiaridades biológicas desses grupos.
Há de se mencionar ainda a dificuldade de garantir o isolamento social e o cumprimento da quarentena, por conta de aspectos sociais e culturais muito fortes na nossa convivência comunitária, além da maior vulnerabilidade socioeconômica, que envolve, condições precárias de moradia, falta de acesso à água e ao saneamento básico.
Para o senhor, como o avanço do garimpo afeta as comunidades indígenas?
O garimpo, assim como todas as atividades ilegais perpetradas em terras indígenas, fragilizam as comunidades e ameaçam a sobrevivência física e cultural dos grupos por meio da violação sistêmica de direitos humanos.
Tomando o exemplo da Terra Indígena Yanomami, trata-se do pior momento de invasão desde que a Terra Indígena foi demarcada e homologada, há trinta anos.
Para além do desmatamento e da destruição dos rios, a extração ilegal de minérios trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, sem falar na contaminação por mercúrio e no recrudescimento assustador da violência contra os indígenas, envolvendo conflitos armados com garimpeiros e assassinatos de lideranças yanomami.
Na esteira dos problemas enfrentados pelos indígenas em outras unidades da federação com os garimpeiros, em Mato Grosso do Sul, quais as principais ameaças para as comunidades dentro de seus territórios?
Mato Grosso do Sul concentra a segunda maior população indígena do Brasil. Atualmente, as comunidades indígenas do Estado sofrem com problemas sociais de várias ordens, que incluem educação, desassistência à saúde, violência e desnutrição.
É uma problemática intimamente ligada à questão territorial, resultado de processos de perda da terra que se deu de maneiras diferentes em relação a cada povo, mas que indiscutivelmente repercutem em sua dizimação por meio de: introdução de doenças desconhecidas, violência física e simbólica exercida por fazendeiros, formas de preconceito, exploração e desmoralização.
Tramita no Congresso Nacional uma lei considerada perigosa para os povos indígenas que trata sobre o marco temporal. Como isso vai afetar as terras indígenas de MS? Já existe um levantamento de quantas e quais terras indígenas poderão não ser demarcadas com a mudança da lei aqui no Estado?
O marco temporal vem sendo utilizado no Brasil em diferentes instâncias do Judiciário para suspender, anular ou colocar sob suspeição a demarcação de terras indígenas.
Nos últimos anos, tem-se sentido os graves impactos do marco temporal, especialmente em Mato Grosso do Sul, no qual as comunidades indígenas vivem, em maior parte, confinadas dentro de minúsculas reservas instituídas na primeira metade do século 20.
Em MS, diversas demarcações de terras indígenas foram anuladas ou suspensas com base no marco temporal, o qual também vem sendo utilizado, em ações possessórias, para justificar mandados de reintegração de posse em áreas habitadas e cultivadas por povos indígenas.
Duas terras de MS já foram anuladas com base nessa tese, sendo Limão Verde [Aquidauana] e Guyraroká [Caarapó]. E há, ainda, cerca de 45 terras aguardando a demarcação e que já foram impactadas pelo marco temporal, pois estão com a tramitação processual suspensa, por conta de orientação da própria Funai e da AGU.
O quão preocupante essa lei é para os povos indígenas? Quais as consequências, além de a não demarcação, essa alteração da lei poderá causar nas comunidades?
Este projeto de lei é um dos principais ataques do Parlamento brasileiro aos direitos indígenas consolidados na CF/88, podendo ser avaliado como uma tentativa de genocídio.
Caso seja aprovado, inviabilizará as demarcações das terras indígenas por meio da incorporação em lei da tese do marco temporal, estabelecida como requisito a ser observado para o reconhecimento de áreas tradicionalmente ocupadas.
Além da questão do marco temporal, outros direitos constitucionais dos povos indígenas estão em risco, como inserir novos pressupostos na política de não contato dos povos indígenas que vivem em isolamento, bem como dispor sobre a abertura de terras indígenas para a realização de atividades econômicas não previstas atualmente.
Como o senhor avalia a quebra de tabu com a participação de líderes indígenas na política? Hoje, existe esse incentivo de “aldear a política” nas comunidades? Como esse trabalho vem sendo executado com as diferentes gerações e etnias?
O movimento indígena vem fortemente incentivando a participação política de seus membros e comunidades. Nós precisamos ocupar a política partidária para ocupar o poder, acabar com a política da morte e levar a Brasília a política da vida originária.
Fortalecer as campanhas de candidatos indígenas é essencial para ampliarmos a representatividade dos povos originários nos espaços políticos, uma vez que a democracia necessariamente implica em participação.
A proposta do movimento indígena é de que os partidos políticos aliados da luta indígena firmem um compromisso com as candidaturas dos povos originários, incentivando e legitimando a filiação partidária e dando apoio institucional a indígenas que lançarem candidaturas.
Quão benéfico é a representatividade que o grupo de rap Brô MC’s, que vai se apresentar no principal festival de música do País, traz para as comunidades indígenas? Como o senhor avalia a projeção que eles estão dando para as causas indígenas?
A presença dos Brô MC’s no Rock in Rio 2022 significa que a cultura e a realidade indígena serão representadas no topo, em cima de um palco mainstream.
Para além da visibilidade em si, a música do grupo traz fortes elementos de resistência da luta indígena, as quais falam das questões mais prementes dos últimos anos, criticando a invasão das terras, o suposto “descobrimento do Brasil”, a destruição da natureza, o preconceito e outros.




