O que diria da homenagem do Cordão Valu ao Ilê Aiyê?
Eu, particularmente, estou muito feliz, né? Essa homenagem está dando uma repercussão muito legal em Salvador. Estive aqui em 2000 com a turnê do Ilê e outras vezes. Mas esse momento é todo especial, com a homenagem do Valu. É muito legal a gente ter o Ilê, esse bloco que surgiu debaixo de várias polêmicas.
O surgimento do Ilê causou muitas polêmicas no Carnaval da Bahia, na cidade como um todo, e muita gente não esperava que a gente sobrevivesse à perseguição, a você ter que levar ficha para a polícia pelo fato de ser um bloco só composto por pessoas negras, que a gente não abre mão disso, porque a gente não se sente contemplado ainda.
Então, é preciso que essa luta continue. E aí, no outro extremo do País, você receber essa homenagem de um bloco carnavalesco, um cordão no termo antigo. Então, a família Ilê Aiyê está muito feliz.
O que você pensa atualmente sobre essa restrição a pessoas não negras no bloco?
O critério não mudou. Porque eu não me sinto contemplado ainda. Todos querem ser negros honorários durante três dias de Carnaval. Não adianta ficar tudo bem com negros e brancos só no Carnaval, e quando chega a Quarta-feira de Cinzas volta tudo ao normal.
Você tendo o seu carro parado [pela polícia]. Não pode ter um carro bacana, porque a polícia vai parar você. Você pode morar em um condomínio porreta, ter um salário legal, mas não se esqueça de que você é negro. Porque, se você esquecer, alguém vai te lembrar. Essa é uma forma muito perversa [do racismo].
Em Salvador, existe o negro rico, que tem dinheiro, [está em] uma classe média. Os caras, quando começam a ficar em uma situação melhor, pensam que viraram brancos. Quando toma porrada, aí procura o movimento negro, procura a gente para se defender. Não pense que você tem uma vida igual, que você virou branco porque você ascendeu socialmente. É muito complicado.
Qual seria o maior entrave para o combate a esse preconceito que há no Brasil, tão naturalizado e tão generalizado, e que hoje se chama racismo estrutural?
Rapaz, eu fico tão impressionado com a juventude negra. Porque, de repente, começa a surgir tanto adjetivo, né? Racismo isso, racismo aquilo. Vejo jovem dizer que nunca foi discriminado, que sabe se defender, não sei o quê. Mas o racismo chega primeiro.
O desentrave também passa por outras coisas. Não pode ficar só botando a culpa no colonizador. E a própria negrada [precisa] se conscientizar também. Não precisa pegar em arma, não precisa ser agressivo.
O Ilê fez essa revolução sem usar arma, só usando a música, a atitude e as baquetas. Chamamos de revolução dos tambores.Já levei vaia na Liberdade [bairro de Salvador] quando nós começamos. Então, se você quer mudar a estética, começamos a usar cabelo black power, depois passamos aos dreads. Aí, você nunca ia imaginar que um tecido de Carnaval viraria uma vestimenta do dia a dia, de você ver uma mulher negra com um tecido de bloco afro, um vestido para ir para a formatura, para ir para o casamento. Mas lá atrás, saí de casa e fui na casa de um amigo na Liberdade com uma bata colorida. Quando desci a favela, os caras me chamando de “maluco”, “Carnaval já passou, pai”. Eu comecei a suar pra caramba [risos].
Tomei uma vaia retada. Pensei que me seguiriam para brigar. Mas com o tempo, isso foi mudando.
As placas, nos salões [de beleza] domésticos, diziam “alisa-se e cacheia-se cabelo”. Já a gente era todo mundo máquina zero, cabelo de pimpão. O Ronaldo Fenômeno até lançou, né? Mas aquilo a gente já usava na adolescência, com 14, 15 anos, e você não podia criar o cabelo black [power] como na moda americana.Depois a gente começou a usar. As meninas pararam de espichar o cabelo. Até os 15 anos, todo mundo usava cabelo trançado, depois espichava o cabelo para poder ficar com o cabelo da mulher branca. Isso foi mudando, surgindo outras profissões, trançadeiras, o pessoal que faz torso... e você não tendo vergonha de usar o que você quiser vestir.
Tivemos uma importância muito grande nisso por meio das músicas. Porque você tem a música, o tema que você educa, que você informa. E a partir do ano que nós começamos a fazer pesquisa, acho que em 1976, a família saiu com temas falando de África, tratando estados como Bahia, Maranhão e Pernambuco como nações africanas. E a música, você começou a informar, a educar.
A escolinha que minha mãe criou lá já trabalhava essas coisas, a questão do candomblé. Depois, nós criamos os cadernos de educação, que são um material muito utilizado hoje, socializado pelo Brasil. Um livro de música virou material didático, porque a gente vinha com o tema e com as letras das músicas.
Uma [música] que é muito importante, que ajudou bastante nesse resgate do orgulho de ser negro, foi “Poesia”.
É um samba de quadra, não fala do branco, não fala do mal nem fala do bem. Só fala do negro. Tudo de ruim que a gente ouvia, essa música manda de volta. Aí “negro é feio” não, “negro é lindo”; “negro fede” não, “negro tem aroma gostoso”.
Aí “que barato o cabelo da negra traçado nagô”. Essa música é de Nego Chica. E aí você vem fazendo esse contraponto, e isso vai ajudando a fazer o resgate do orgulho de ser negro, de não ter vergonha de ser negro.
O que você acha da diversificação da chamada pauta identitária? Que impacto teria na militância e no engajamento do povo negro?
Acho que fortalece. Mas o problema é que você não pode entrar em disputa, de isso aqui ser mais importante do que aquilo ali. Não se é negro somente pela pigmentação. Os caras ficam tentando fazer moda. Não precisa de tanto adjetivo. Como estava falando, na escola da Mãe Hilda já se fazia isso há muitos anos. Aí, de repente, aparece agora uma educação que se chama de antirracista.
Antes de ter a Lei Federal nº 10.639/2003 [ensino obrigatório da cultura afro-brasileira e africana no País], a gente já fazia isso. Não temos problema em sentarmos na mesa com os brancos. Tivemos e temos vários companheiros [não negros]. Mas o que sempre quisemos – e continua a ser – é reafirmar a nossa negritude. Já fui chamado de falso africano.
Como está o Ilê hoje?
No nosso projeto, como em outros projetos sociais, se não tivesse a missão de fazer filantropia, estava com a vida resolvida. O dinheiro que entra dos shows você tem que pagar os músicos com uma parte e, com a outra, investir nos projetos, porque nem sempre temos patrocínio. Você salva muitas vidas porque isso é preciso.
Mas eu não sou governo, nós não somos governo. Então, os caras precisam atuar mais, pegar o modelo de criatividade que nós tivemos para atuar.
Você vê agora como o governo americano está agindo, né? Essa coisa da Faixa de Gaza, uma destruição retada. Daqui a pouco, estamos em outra guerra mundial. Fora a violência contra os gays, porque o pessoal não sabe, não está convivendo junto. Esse negócio de supremacia, não só a supremacia racial, mas dentro da comunidade também, as coisas estão ficando muito difíceis. Lá no Ilê Aiyê, em 1974, minha irmã me perguntou: “As minas vão sair também?”. Eu disse que sim. Desde que nós fundamos, teve homens e mulheres, e hoje tem homossexual na diretoria do Ilê Aiyê.
Sempre teve essa convivência. Lá na Liberdade, em Curuzu [bairro de Salvador], você tinha os terreiros de candomblé, os centros de testemunhas de Jeová, e todo mundo convivia bem. O pastor das testemunhas de Jeová era pedreiro e fazia o jardim do terreiro, fazia o trabalho dele. Quando tinha qualquer problema lá com os crentes, minha mãe já tinha sido acionada para resolver com a prefeitura. Tinha uma convivência, não tinha esse separatismo que está tendo agora.

As pinturas de Isabê também estarão na Casa-Quintal 109 de Manoel de Barros, museu na antiga residência do poeta, no Jardim dos Estados - Foto: Divulgação


Filme lança hoje - Foto: Divulgação

Patricia Maiolino e Isa Maiolino
Ana Paula Carneiro, Luciana Junqueira, Beto Silva e Cynthia Cosini


