Exército e Iphan apresentam projeto de R$ 8 milhões para restauração do Forte Coimbra; a ideia é que os recursos sejam captados pela Lei Rouanet e que as intervenções, além de integrar a comunidade civil, fortaleçam o culto a Nossa Senhora do Carmo
Exército e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) aguardam aprovação do Ministério da Cultura para captar R$ 8 milhões, via Lei Rouanet, para o projeto de restauração do bicentenário Forte Coimbra, no Pantanal de Corumbá, tombado em 1974. A obra vai além da preservação de um dos maiores patrimônios arquitetônicos nacionais: integra a comunidade civil local e fortalece a religiosidade e a manutenção da festa de Nossa Senhora do Carmo.
Construído a partir de 1775 no estreito de São Francisco Xavier, margem direita do Rio Paraguai, a fortificação foi palco de duas grandes batalhas no século 19, contra os espanhóis (1801) e os paraguaios (1864). Infinitamente inferiores, os brasileiros teriam sido massacrados sem a intercessão da santa padroeira, cuja imagem na muralha do forte, segundo registros, fez os inimigos retrocederem, fato considerado milagroso e cultuado por militares e civis.
Situado na tríplice fronteira do Brasil com Bolívia e Paraguai, Coimbra é um exemplar da arquitetura militar portuguesa do século 18 nos sertões ocidentais brasileiros e testemunho da ocupação do território nacional no período de guerras e indefinições limítrofes. Após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), o Exército assumiu a administração e hoje mantém um pelotão especial, subordinado à 18ª Brigada de Infantaria de Fronteira, guardando o local.
ESTUDO ARQUEOLÓGICO
A proposta de revitalização encomendada pelo Iphan sugere a rerratificação da área tombada (abrange apenas a fortificação), para corrigir distorções da legislação da época e garantir a preservação de outros elementos singulares que compõem o espaço: a Gruta Ricardo Franco, as vilas militar e civil, o mirante, a morraria no entorno, o Rio Paraguai e as ilhas Coração e Comprida. Também se propõe um estudo arqueológico antes do início das obras.
O detalhamento das intervenções foi apresentado no encontro para celebrar os 50 anos de tombamento do forte, dia 23, em Corumbá, promovido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso do Sul (CAU), Iphan/MS, prefeitura de Corumbá, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Exército. Também foi dada ênfase para a devoção à santa padroeira como elo da comunidade local com o conjunto que originou a povoação pós-guerra.
Um dos palestrantes, o superintendente regional do Iphan, João Santos, informou que os projetos de restauro foram elaborados respeitando os valores estéticos e culturais das edificações que compõem o forte.
As intervenções buscarão melhores condições de acessibilidade, adequações nos banheiros, restauração do piso e da cobertura, ampliação dos quatro espaços expositivos, além de novas pinturas nas paredes internas e externas.
GESTÃO DE RECURSOS
Representando o Exército, a 2ª tenente e museóloga Kauanna Souza explicou que os recursos serão captados por meio da organização Appa Cultura & Patrimônio, de Minas Gerais, que está envolvida também no restauro e na revitalização de outros dois fortes: a Fortaleza de São José de Macapá e o Real Forte Príncipe da Beira. Juntamente com o Forte Coimbra, eles estão na disputa para se tornarem patrimônio mundial pela Unesco. “Assim o projeto anda mais rápido”, completou.
O superintendente do Iphan observou que “o projeto foi construído a várias mãos pensando na preservação do patrimônio cultural como um todo e na valorização dos aspectos sociais”. Uma das etapas prevê qualificação da comunidade “para fazer a vida girar” no distrito, segundo Kauanna. O acesso rodoviário ao forte, com a implantação da BR-454, de 70 km, em execução pelo governo do Estado, vai fomentar o turismo, e os moradores precisam estar preparados.
Festa será reconhecida como patrimônio cultural
Findada a Guerra do Paraguai, a reconstrução em etapas do forte se deu na mesma proporção em que começaram a se instalar os casebres de ribeirinhos e voluntários da guerra, com o Exército, já no controle do bem, proibindo novas edificações a partir de 1930. A vila dos civis prosperou, mantida pelos descendentes, com comércio e pousadas, e chegou a ter 400 moradores na década de 1990. Hoje, são 20 famílias (50 pessoas, a maioria adultos).
O êxodo, que coloca em risco a preservação da tradicional festa de Nossa Senhora do Carmo, se deu por vários fatores: restrições impostas pelos comandantes da guarnição militar, com ordens excessivas, isolamento (chega-se ao distrito apenas pelo Rio Paraguai, distante 70 km da BR-262, no Morrinho), e abandono imposto pela prefeitura. A energia elétrica chegou ali somente no ano 2000; hoje estão fechados a escola, o posto de saúde e o cemitério.
“Com a perda populacional, será que teremos a festa da padroeira daqui a alguns anos?”, questionou o professor Joelson Pereira, da Universidade Federal da Grande Dourados, ao abordar o contexto sociocultural da manifestação popular, que atrai fiéis e turistas de várias regiões do País.
“O que mantém a tradição são as pessoas, é preciso garantir cidadania com serviços públicos, tornar aquela região um polo de desenvolvimento do Pantanal”, cobrou.
RECONHECIMENTO
Apesar do descaso da administração pública, por iniciativa da Fundação Municipal de Cultura e do Patrimônio Histórico, a Câmara Municipal de Corumbá aprovará projeto de lei que declara a celebração religiosa, que ocorre secularmente no dia 16 de julho, como patrimônio cultural imaterial do município. A fundação apresentou minucioso dossiê da festa, que reúne centenas de devotos civis e militares e tem procissão, churrasco de chão, muita comida e baile.
“Não vamos deixar a festa acabar por capricho de alguns”, garantiu a festeira Marina Arruda Ferreira, de 69 anos, que, apesar de morar na cidade, é fervorosa devota da santa há 50 anos e ajuda na organização da celebração. Ela afirmou que a intransigência de alguns comandantes do forte tem prejudicado o evento, citando que no ano passado a ordem do comando era de acabar o baile às 22h e que a procissão foi impedida de entrar na área militar.
SANTA VIVA
Os conflitos entre civis e militares não são recentes, submetendo a comunidade inclusive a toque de recolher. Em 2005, o Exército tentou remover a população para a cidade, mas, com a intervenção do Ministério Público Federal, os moradores receberam a concessão de direito real de uso da área. Em 2021, o Iphan negou pedido do Exército para demolir os imóveis desocupados. Marina Arruda conta que um comandante evangélico chegou a proibir a festa.
“Fui no general da brigada e disse que precisava pagar promessa, então ele autorizou ir ao forte”, lembrou a devota. “O comando atual do forte é nosso parceiro”, prosseguiu. “A padroeira é uma santa viva, meu irmão mais velho, de 91 anos, conta que quando servia no forte, ainda jovem, cansou de ver, com outros soldados, a santa andar à noite pelo caminho entre a antiga e a nova capela. Ninguém vai conseguir acabar com seus milagres e nossa fé”, sustentou. (SA)
Assine o Correio do Estado