Antes mesmo da estreia de One Night in Idaho: The College Murders na Amazon Prime Video, o documentário já causava impacto fora das telas. A equipe de defesa de Bryan Kohberger argumentou em juízo que a série comprometeria o julgamento do (até então) acusado, influenciando a opinião pública. Pediram mais tempo.
O juiz recusou. Poucas semanas depois, quase três anos após o assassinato brutal de quatro estudantes da Universidade de Idaho, Kohberger admitiu a culpa em troca da exclusão da pena de morte. Mesmo diante desse desfecho, o documentário permanece essencial num cenário saturado por um consumo desmedido de true crime — um gênero que muitas vezes prefere a tensão ao tato, o vilão à vítima.
Para quem não lembra, ou não sabe, em 13 de novembro de 2022, quatro estudantes da Universidade de Idaho — Ethan Chapin, Xana Kernodle, Madison Mogen e Kaylee Gonçalves — foram brutalmente assassinados a facadas enquanto dormiam, dentro de uma casa fora do campus, na cidade de Moscow, Idaho.
O crime chocou os Estados Unidos pela violência, pela juventude das vítimas e pela ausência inicial de suspeitos, que gerou medo e um frenesi de teorias não verificadas nas redes sociais. O caso viralizou em plataformas como TikTok e YouTube, onde “detetives amadores” espalharam acusações infundadas que atingiram até pessoas inocentes.
A comoção aumentou quando o principal suspeito, Bryan Kohberger, foi preso um mês depois: ele era um estudante de doutorado em criminologia, o que levou o público a questionar suas motivações e sua obsessão por entender o comportamento de criminosos. O caso se tornou um símbolo da forma como tragédias reais são consumidas como entretenimento.
O primeiro diferencial de One Night in Idaho em relação aos que já foram exibidos está nos nomes por trás da produção: Liz Garbus e Matthew Galkin, documentaristas premiados, conhecidos por seu compromisso ético e por abordagens sensíveis diante de histórias reais e dolorosas.
Dividido em quatro episódios, o projeto revisita os assassinatos dos estudantes A série de Garbus caminha em sentido oposto de toda comoção aproveitadora da tragédia, devolvendo profundidade, humanidade e contexto às vidas perdidas.
Desde seus primeiros minutos, One Night in Idaho revela sua intenção: evitar o sensacionalismo. O nome de Bryan Kohberger sequer é citado no início. O foco está inteiramente nas vítimas — suas personalidades, laços afetivos, sonhos interrompidos.
A série reconstrói essas vidas através de vídeos pessoais, fotos e depoimentos comoventes de familiares, amigos e professores. É a primeira vez que as famílias Chapin e Laramie falam publicamente sobre a tragédia, e seus relatos conferem à série uma honestidade emocional que poucos documentários do gênero conseguem alcançar.
Um dos aspectos mais potentes da obra é sua crítica contundente à cultura digital. Garbus mostra como youtubers, criadores de conteúdo no TikTok e os chamados “detetives de sofá” passaram a explorar o caso como entretenimento. Numa avalanche de lives, teorias e vídeos virais, pessoas inocentes foram difamadas, e a dor das famílias se viu eclipsada por uma ânsia coletiva por cliques e narrativas excitantes.
Em vez de apontar apenas o dedo para o assassino, a diretora volta a câmera para nós — para quem consome, compartilha, comenta e transforma tragédias reais em conteúdo.
Cinema B+: One Night in Idaho: O True Crime Que Coloca o Foco Onde Importa - DivulgaçãoA série também documenta com precisão os desdobramentos da investigação. Entre as provas reunidas: DNA encontrado na bainha de uma faca, imagens de câmeras de segurança e registros telefônicos que colocavam Kohberger, um estudante de criminologia da Universidade Estadual da Pensilvânia, nas proximidades da cena do crime.
Em julho de 2025, pouco antes do lançamento da série, ele aceitou um acordo judicial, admitindo os crimes e recebendo quatro sentenças de prisão perpétua. O documentário, portanto, chega ao público com um arco fechado — algo raro nesse tipo de produção — e oferece espaço para reflexão em vez de especulação.
Um elemento especialmente inquietante abordado no último episódio é a possível atividade de Kohberger sob o codinome “Pappa Rodgers”, numa rede social em que um usuário parecia ter acesso a detalhes ainda não divulgados pela polícia.
A hipótese, explorada com cautela pela série, sugere que o assassino possa ter se infiltrado nas discussões online, alimentando ele mesmo a febre midiática em torno do caso. A série também flerta, de forma breve porém incisiva, com a leitura de que o crime pode estar ligado à cultura Incel, discutida anteriormente este ano na série Adolescência.
A recepção da crítica tem sido majoritariamente positiva por causa da delicadeza da direção, a inteligência narrativa e o compromisso ético da produção. One Night in Idaho não busca chocar nem “resolver o crime” — o que já foi feito.
Seu mérito está em compreender e expor as consequências culturais e emocionais do crime, tanto para os familiares das vítimas quanto para uma sociedade cada vez mais viciada em tragédias alheias.
Em um mercado saturado por produções de true crime que frequentemente romantizam criminosos ou esvaziam o sofrimento das vítimas, One Night in Idaho se destaca como um marco de respeito e humanidade. O documentário nos obriga a pensar: por que consumimos dor como entretenimento? O que perdemos no processo?
E o que significa, hoje, lembrar de quem partiu sem explorar sua morte? Liz Garbus não oferece respostas fáceis, mas nos dá o que mais falta nesse universo: empatia, memória e silêncio onde antes só havia ruído.


