Até Denis Villeneuve desafiar os mais céticos e resgatar Duna da memória de kitsch, foi o filme de 1984, assinado por David Lynch, que ficou como referência para o clássico de sci-fi no cinema.
E, curiosamente, 40 anos depois, em 2024, Duna é um dos maiores sucessos de crítica e bilheteria, quebrando a crença geral que dizia que a obra era a maquina trituradora de talentos de diretores, ou até mesmo, o livro impossível de ser transportado para o cinema. Agora é simplesmente, um sucesso.
Até alcançar o status de cult foi um longo e árduo caminho para a versão de 1984, a maior tentativa de Hollywood até então. Em números, foi fracasso. Custou mais de 42 milhões, arrecadou 30, e foi comparado desfavoravelmente aos sucessos da época como Star Wars, E. T. e Alien.
Digo como público alvo no ano de lançamento: eu detestei cada minuto do que vi, ao ponto de resistir a dar uma chance a Villeneuve, mas cedendo e me rendendo ao diretor.
Em 2021, e plena pandemia, Duna de Denis Villeneuve fez enorme sucesso, embora ainda sob os efeitos da pandemia e a briga de janelas de cinema e plataformas tirando os números esperados de bilheteria.
Com a chegada da segunda parte da trilogia nos cinemas e o aniversário de 40 anos do Duna de David Lynch, vou fazer a viagem do tempo e relembrar os bastidores. Algo que adoro fazer!
Tudo começou com um romance inovador, de 1965
Frank Herbert lançou sua obra prima, Duna, ainda em 1965 e até hoje é considerada uma das melhores obras de sci-fi de todos os tempos.
Ele tinha escrito O Dragão do Mar alguns anos antes e quando viajou para Oregon, onde visitou as dunas locais, encontrou a inspiração para uma saga inovadora.
A viagem era porque ele ia escrever um artigo sobre a movimentação das montanhas de areia, que poderiam “engolir cidades inteiras, lagos, rios, rodovias”, o que o fez apurar pesquisas sobre ecologia e desertos, abrindo o leque para um mundo novo.
O artigo levou anos para ser publicado. Isso porque Duna engoliu o tempo e a concentração do autor.
Inspirado em vários temas ainda inexplorados há 50 anos, como colocar minorias como protagonistas e discutir impacto ambiental, Duna foi algo inesperado e inovador.
A conversa com grupos indígenas, que alertavam que o efeito da exploração madeireira nas reservas locais ia “transformar o planeta num deserto” como o Saara e isso faria do mundo “uma “grande duna” foi tão impactante para Herbert que o cenário, portanto, estava decidido.
Juntando o interesse do escritor sobre a mística dos super-heróis e messias, assim como política e a trama começou a ser desenhada. Afinal, em seu levantamento conferiu que ambientes desérticos historicamente deram origem a várias religiões importantes com impulsos messiânicos.
E claro, sem esquecer que Frank Herbert plantava e usava “cogumelos mágicos” para expandir e estimular sua imaginação (quem já viu Duna entende a referência): a caixa seria aberta de forma inesperada.
Precisaram de 5 anos até a publicação do livro, em três partes, com ilustrações que ajudavam a entender o conceito criado pelo autor.
Publicado em agosto de 1965 como um romance, não explodiu em vendas, inclusive foi considerado nichado, mas, aos poucos inverteu o quadro e virou febre mundial. Nascia uma grande saga.
1984 e 2024 - DivulgaçãoUma história sci-fi sem tecnologia
Um dos marcos mais significativos de Duna é que Frank Herbert suprimiu deliberadamente a tecnologia em seu universo. O foco é a humanidade e seu futuro é determinado por instituições lideradas e criadas por eles mesmos.
Desse conceito que nasceu a “Jihad Butleriana” onde todos os robôs e computadores foram destruídos. Nada de culpar Inteligência Artificial tirando nosso livre arbítrio, o conflito é gerado por intolerância religiosa. Vamos combinar que esse é um conceito revolucionário ainda em 2024.
A narrativa do romance também pode ser identificada em seus filhotes, sim, estou falando de George R. R. Martin em seus Game of Thrones e Fogo e Sangue, uma vez que Duna é contado como se estivéssemos lendo os diários da Princesa Irulan, portanto uma narrativa sem distanciamento (embora acredite que é), com comentários históricos, biografia, citações e filosofia inventadas por Herbert e que contextualizam o universo criado por ele.
Essa possibilidade é justamente o que alimenta os fãs de Martin e Herbert a revisitar frequentemente os livros (séries e filmes), pois há camadas em aberto para justificar ações e considerar outras possibilidades e foi calculada pelos escritores.
Se há uma mensagem ecológica em Game of Thrones com os White Walkers e o Night King simbolizando as consequências do aquecimento global (só que em gelo em vez de deserto), é apenas porque Duna popularizou mesclar os assuntos.
O plano de Frank Herbert era mesmo de ter um “manual de conscientização ambiental” realçando os perigos do desmatamento, da falta de água iminente no planeta e exploração do petróleo, fazendo da obra o que chamam de “o primeiro romance de ecologia planetária em grande escala”. E, como vemos, um conteúdo perigosamente atual 50 anos depois…
E o lado religioso da obra também foi pioneiro pois a referência ao Oriente Médio e islamismo é inegável ao longo da história, incluindo termos, palavras e conceitos reais na língua árabe na cultura dos Fremens. Quando não eram autênticas, as palavras soam árabes. Ainda hoje, algo que autores ocidentais mantém certa distância.
O longo caminho das páginas para as telas
Uma história épica, cheia de cenários exóticos e um conto heroísmo complexo é o que todos roteiristas e diretores adoram pensar nas grandes telas de cinema. Mas Duna ficou lendária como “impossível” de fazer essa conexão.
Em 1971, o produtor de cinema Arthur P. Jacobs, vivendo o auge do sucesso com sua trilogia do Planeta dos Macacos, saiu na frente e comprou os direitos de Duna, mas morreu apenas dois anos depois, em 1973, aos 51 anos, sem avançar no projeto.
É uma grande incógnita de “e se” porque o diretor selecionado para ele era ninguém menos de David Lean cujo Lawrence da Arábia era visualmente gigantesco e sobre a mesma personagem que influenciou Frank Herbert.
Com isso, um grupo de produtores de cinema franceses entraram no circuito, trazendo Alejandro Jodorowsky, cuja visão criativa é um conto à parte e não deu certo. Muitos lamentam.
Na versão de Jodorowsky, Salvador Dalí seria o Imperador, Orson Welles o Barão Harkonnen, Mick Jagger faria Feyd-Rautha, Udo Kier interpretaria Piter De Vries, e David Carradine daria vida a Leto Atreides.
No papel de Paul, ele escolheu seu filho, Brontis Jodorowsky. A lendária Gloria Swanson interpretaria a reverenda Mãe Gaius Helen Mohiam e a trilha sonora seria assinada pela banda Pink Floyd. Obviamente demandaria um orçamento astronômico e quando o roteiro alcançou o marco de 10 a 14 horas para contar o épico, foi encostado.
Ainda assim, a grandiosidade imaginada por Jodorowsky impactou significativamente os filmes de ficção científica da época e influenciou os que vieram depois dele para o projeto.
Com o caminho “liberado”, o produtor Dino De Laurentis, que trabalhava com Fellini e tinha vários sucessos, assim como um reboot de King Kong, comprou os direitos em 1976. O problema agora é que a essa altura o mundo foi tomado pela febre Star Wars, que sacudiu as bilheterias em 1977.
Isso encorajou a De Laurentis a perceber o final dos anos 1970s como um bom momento para épicos espaciais e nada mais grandioso do que Duna, não é?
E ousadia parece ser a senha básica da obra. O próprio Frank Herbert trabalhou no roteiro (em 1978), mas o que entregou sugeria que teria uma duração de três horas. Se hoje é comum, naquela época era um sonoro “não”. Por isso, para capitanear o projeto, De Lareuntis elegeu Ridley Scott, cujo sucesso de Alien, em 1979, parecia indicar ser perfeito para o desafio.
Na visão do diretor, Duna estaria na mesma direção de Star Wars, “mas para adultos” e que precisaria ter o livro separado pelo menos em dois filmes.
Foram três rascunhos do roteiro em um processo lento dado ao envolvimento do produtor em todas as etapas, mas um problema familiar o afastou do projeto definitivamente. Dali, Ridley embarcou em Blade Runner.
Com isso, já entrando na década de 1980s, que o produtor olhou para David Lynch como alternativa. Lynch estava em alta pelo mega sucesso de O Homem Elefante e estava cogitado para dirigir O Retorno de Jedi.
Ao receber o convite de ser o primeiro a filmar o clássico, Lynch pulou fora de Star Wars. Talvez algo que mudasse a saga dos Skywalkers lá atrás e que ele viria se arrepender.
Dune 2024 - DivulgaçãoConflitos de bastidores
Depois de cinco rascunhos, a produção desembarcou no México em 1983 para começar as gravações, com um elenco basicamente de artistas americanos e britânicos menos conhecidos.
Duna marcou as estreias de Sting (então vocalista da banda The Police) e do ator Kyle MacLachlan, sendo que esse logo no papel principal. A trilha sonora foi assinada pela banda Toto, que na época fazia sucesso com o hit, Africa.
Logo os problemas começaram. Assim como George Lucas com Star Wars, os efeitos especiais para universos intergalácticos eram arriscados e flertavam perigosamente com o cringe. Um dos problemas de Duna é justamente a “pobreza” visual. Mas o pior é que embora tenha escrito um roteiro pensando em dois filmes, Duna acabou sendo condensado em um só, ficando confusa e incompleta.
O que foi gravado foi o sexto roteiro, com 135 páginas. Gravar fora dos Estados Unidos ajudava no custo de produção, mas isso também ficou claro no resultado final. Eram 80 cenários construídos em 16 palcos sonoros, uma equipe de 1.700 pessoas envolvidas e mais de 20.000 figurantes.
A atriz Francesca Annis, que interpretou Lady Jessica, lembrou da presença constante de Dino De Laurentiis nos bastidores, opinando em todas as decisões de David Lynch. “Minha experiência trabalhando em Duna foi que se David Lynch tivesse conseguido fazer seu próprio filme, teria sido brilhante, mas infelizmente Dino supervisionou cada pequena coisa.
Dino já estava pensando na venda de vídeos. David queria deixar as cenas muito sombrias, todos os submundos muito sombrios e parecendo muito sinistros. Dino não permitiria isso. Tinha que ser bem iluminado para que pudesse ser transferido bem para o vídeo, onde acho que naquela época as coisas pioraram.
David e Freddie Francis estavam constantemente paralisados e não acho que David fez o filme que queria”, ela comentou na época do lançamento da nova versão de 2021.
O primeiro corte bruto do filme, sem efeitos de pós-produção, tinha mais de quatro horas. A essa altura já estavam no sétimo roteiro que estimava quase três horas de duração.
O Estúdio determinou que o lançamento teria apenas duas horas. Os cortes são sentidos. Filmaram novas cenas para simplificar a trama, adicionaram narrações em off e a famosa introdução de Virginia Madsen.
“Vou te contar, quando fui ver o filme pela primeira vez na estreia — e só o vi uma vez —, assim que a Princesa Irulan (Madsen) começou a falar em voz off no início, explicando a história, pensei “Uh oh, este filme está com problemas. Qualquer filme de Hollywood que tenha que se explicar detalhadamente no início está em apuros…”, comentou Francesca.
DUNE - 1984 - Divulgação
De odiado a cult: uma trajetória dolorosa
Chegando aos cinemas no final de 1984, a expectativa positiva de Duna era gigantesca. Os problemas foram imediatos com a crítica arrasando o resultado final e o público sem dar o retorno esperado nas bilheterias.
As comparações eram implacáveis. Duna foi dos mais caros já feitos, com um orçamento maior que a trilogia Star Wars e quatro vezes mais caro do que a sensação de bilheteria de dois anos antes, E.T., mas arrecadou menos que eles todos.
Os desentendimentos entre David Lynch e os produtores ficaram lendários, com ele renegando. as versões (sim foram quatro) lançadas e pedindo para que seu nome fosse removido ou alterado para pseudônimos em algumas delas.
Tudo isso causou um efeito passional nos fãs do diretor, passando a colocar Duna no patamar de Cult. Ainda assim é um fato que a versão de 1984 foi um desastre. Para muitos, o pior filme do ano. Ui.
De amado à maldito: a TV “salva” a saga
Com tantos problemas, Duna virou sinônimo de impossibilidade. Frank Herbert faleceu em 1986, sem ver como sua obra seria colocada no patamar que estava na literatura.
Depois dessa traumática tentativa de blockbuster, David Lynch se afirmou como um dos mais ousados e criativos diretores do cinema independente, com Blue Velvet e depois o fenômeno na TV, Twin Peaks, todas com Kyle MacLachlan liderando o elenco.
O relançamento de 1988, com a versão ainda mais longa, de três horas, foi a que sedimentou a briga de Lynch com os produtores. Até hoje se recusa a falar do filme. Mas tudo isso também manteve a lógica que Duna merecia ter uma segunda chance.
Em 1996 os direitos do filme passaram para Richard P. Rubinstein, que produziu Dawn of the Dead e Pet Sematary e quatro anos depois chegou à TV com uma produção elogiada e premiada. Ficou a questão: e no cinema? Não seria a hora de tentar?
Um diretor visionário e apaixonado pela obra
David Lynch só leu Duna para fazer o filme, algo diferente com Denis Villeneuve. Mas seu caminho até a saga começou em 2007, quando um grupo de estudantes espanhóis lançou um trailer de quatro minutos de uma versão feita por um fã da obra. Foram sete anos para produzir, mas impossível de conferir porque foi retirado do YouTube e nunca chegou aos cinemas.
A reação, agora já com redes sociais como termômetro, fez com que a Paramount decidisse que era a hora de uma nova adaptação do romance.
Em 2008, Peter Berg e Pierre Morel (de Taken) foram escalados, mas depois de quatro anos de idas e vindas, desistem. Justamente quando um documentário sobre a primeira tentativa de Jodorowsky de fazer Duna foi sucesso no Festival de Cannes de 2013.
Três anos depois a Legendary Films adquiriu os direitos de filme e TV de Duna trazendo um fã apaixonado, um especialista de toda obra para liderar o que é considerada a tentativa mais acertada de todas: Denis Villeneuve, que fez sucesso em 2016 com o filme Chegada. “Duna é o meu mundo” ele resumiu. E é mesmo.
Entre 2017 e 2021, quando sua primeira parte chegou aos cinemas, Villeneuve foi acompanhado de perto pelos rigorosos fãs. Que elevaram Duna ao patamar esperado por 50 anos: de obra prima.
DUNE - 2024 - Divulgação
Uma trilogia que tem tudo para ser lendária
É fácil comparar Denis Villeneuve com Frank Herbert com o que Peter Jackson conseguiu com J.R.R. Tolkien: um especialista tão profundo da obra que consegue, finalmente, traduzi-la em imagens.
Curiosamente, depois de seu grande sucesso nos Estados Unidos, Chegada (2016), pelo qual foi indicado ao Oscar como Melhor Diretor, foi justamente a sequência de um clássico de Ridley Scott – Blade Runner 2049 – que solidificou Villeneuve como um diretor de filmes grandiosamente visuais e filosóficos. Sabendo que Scott deixou Duna para fazer Blade Runner, é quase cármico que o diretor canadense seja o diretor que quebrou a “maldição”.
Seguindo os passos de George Lucas e Peter Jackson, Villeneuve transformou Duna em franquia, com dois filmes inicialmente, mas agora com toda cara de trilogia. Isso porque sentiu que o romance de Herbert era complexo demais para um único filme, como a produção de 1984 comprovou.
Mais ainda, sem criticar Lynch ou Jodorowsky, preferiu ignorar os filmes e roteiros deles e se voltar aos livros apenas.
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O que Duna de agora tem de vantagem também é o avanço da tecnologia que permite, mesmo usando poucos efeitos, a história possa ser realista e bonita visualmente, sendo que 50 e 40 anos depois, os temas tratados nos livros são facilmente identificáveis atualmente.
Uma decisão que mostra inteligência e ousadia foi eliminar os monólogos internos e epígrafes usados no livro, assim como simplificaram os diálogos, parte da trama política, além de concentrar a primeira parte em torno de Paul e Jessica.
A primeira parte de Duna chegou a fazer mais 435 milhões de dólares, a melhor da carreira de Villeneuve, mas caiu 62% na semana seguinte porque foi disponibilizado nas plataformas por causa da pandemia. Mesmo sendo visto quase dois milhões de americanos nos três primeiros dias, a estratégia interferiu nos números e Villeneuve endossa o grupo de diretores que defende não encurtar a janela de cinema para o streaming.
É quase certo que teremos mesmo um terceiro filme (baseado em Dune Messiah), e sabemos que há também uma série, Dune: Prophecy, sendo desenvolvida para televisão. A série focaria nos anos anteriores do que vemos nos filmes, centrada na Bene Gesserit e tem Travis Fimmel anunciado como parte do elenco.
O problema? A produção está temporariamente parada… com todo foco da Max em House of the Dragon, será que teremos nossa série de Duna? Torço que sim!

Helio Mandetta e Maria Olga Mandetta
Thai de Melo


