Cena 1. Desenganado por sua equipe médica, um homem doente está em tratamento hospitalar e tem pouco tempo de vida. A angústia toma conta.
Além de não mais poder lutar contra o fim, o enfermo carrega consigo a amargura de quem há muito rompeu, por completo, qualquer tipo de relação com a família.
Cena 2. Inesperadamente, ao cair da tarde, ele recebe a visita da mãe e os dois fazem a reconciliação.
Cena 3. No dia seguinte, o homem morre.
Você lembrou o título do filme? Pois saiba que errou, não importa qual nome tenha chutado. A história e os personagens são reais e pertencem às memórias da historiadora Raquel Anderson, de 56 anos, coordenadora do projeto A Literatura Cura.
Em atividade desde 2017, o projeto completa quatro anos no mês de junho e tem por objetivo proporcionar acolhimento emocional aos pacientes em internação no Hospital Cassems (Caixa de Assistência dos Servidores do Estado de Mato Grosso do Sul), em Campo Grande.
Por meio de dinâmicas de interação em que a palavra escrita assume lugar central, o projeto mobiliza o paciente e, quando possível, seus familiares em torno de valores e de sentimentos que estimulam o bem-estar e o entusiasmo pessoal.
Últimas notícias
Sem perder a perspectiva da realidade que os prontuários mostram, a ideia é recobrar, por meio da poesia e do lirismo literário, a importância do diálogo, da afetividade e do estado de paz interior, na atitude pessoal do paciente, para que as coisas se ajeitem da melhor forma na cabeça e no corpo.
Mente sã, corpo são
Aliás, o conhecido ditado “Mente sã, corpo são” é a tradução livre de um verso em latim (“Mens sana in corpore sano”) atribuído justamente a um poeta, Juvenal, da Roma Antiga, que viveu entre os séculos I e II da era cristã.
No contexto original, a frase indica uma meta, um desejo a ser atingido. Mas há séculos ganhou a conotação que hoje é um monumento da sabedoria popular universal: para o corpo estar saudável, é preciso manter a cabeça no lugar.
Mesmo quando uma doença parece imbatível, maiores são as chances de se obter conforto pessoal, ou até reagir de modo mais favorável ao tratamento médico, se a postura mental focar na autoestima e no chamado pensamento positivo.
Especialistas reiteram que a maioria das enfermidades tem origem psicossomática, ou seja, são deflagradas por fatores emocionais.
Desde o início do projeto, o Literatura Cura já prestou mais de 500 atendimentos, com direito a embalagens personalizadas contendo as mensagens poéticas, no formato e com a estampa de uma caixinha de medicamento que traz o nome do paciente-leitor. É como se a bula fosse o remédio.
“A literatura é, sim, capaz de curar tudo, porque ela é uma arte. E a arte e a poesia podem tudo”, vaticina Raquel Anderson.
As cartas destinadas aos pacientes são escritas – bordadas ou aquareladas – de próprio punho por Raquel, a personagem secreta na cena 1, do começo desse texto, para que a cena 2 pudesse ter acontecido.
“Ele estava em condições muito frágeis de saúde, com pouco tempo de vida e muito triste porque não tinha contato com a família; eu corri e escrevi uma carta como se fosse ele”, conta a escritora.
Anamnese literária
Durante a conversa, a escritora fala de exemplos, recentes e bem antigos, que ilustram o valor “dessa junção tão linda e importante” da literatura com a saúde. Na Roma Antiga, destaca a escrevinhadora, ainda no século 2 da era cristã, poesias eram prescritas com efeito curativo.
Algumas universidades, em Portugal e na Inglaterra, incluem a literatura nos currículos de formação da área médica.
“Em 2013, do ponto de vista da saúde pública, a Grã-Bretanha assumiu a literatura como uma parceira da medicina. Ao longo da história da humanidade, a civilização foi sempre permeada pela beleza que é a literatura”, derrama-se Raquel, que se formou em história, em 1992, pela UFMS.
A ideia de criar o projeto lhe ocorreu ao passar em frente ao Hospital da Cassems, no Carandá Bosque.
“Construído num lugar com uma exuberância muito interessante da natureza, no entorno do Parque das Nações Indígenas, de mata do cerrado pantaneiro, do lado do Parque dos Poderes. Me impressionei, vi que era um hospital novo e pensei ‘poderia ter literatura aqui dentro, a literatura tem que atingir as pessoas’. E tive a ideia de fomentar o desejo de reflexão por meio da literatura”, diz a coordenadora do ALC.
Às vezes, mesmo diante de um câncer, a escrita funciona também como um dispositivo que ajuda a revelar outros dons artísticos. Por exemplo, o desenho e a pintura.
Com a cumplicidade estabelecida a partir dos textos, conta a escritora, Raquel soube do talento de uma menina que lutava contra a doença. E procurou fazer da habilidade manual da garota o mote de suas intervenções.
A jovem artista curou-se do câncer, ganhou exposição de seus trabalhos no hospital, deu entrevistas e se tornou símbolo da esperança que a escritora tanto deseja despertar em sua comunidade de leitores especiais.
“A família morava no interior, então pedi que os Correios dessem tratamento de Sedex à correspondência, daí nasceu a ideia do selo postal do projeto, e a mãe recebeu a carta no outro dia cedo”, prossegue Raquel.
“Eles se perdoaram, conversaram e tiveram uma despedida linda, uma relação de afeto importantíssima que mudou o fim da vida dele, com a oportunidade de rever a mãe, ter o perdão e transformar todo um momento”.
Da folha de papel para a tela do tablet
A carta foi a principal ferramenta utilizada pela iniciativa até o surgimento do coronavírus. Ao impossibilitar a circulação de objetos de mão em mão, a Covid-19 levou o projeto, em 2020, para os tablets digitais, com atendimentos por videochamada e uma pequena alteração no nome para Tele Literatura Cura.
Os equipamentos foram obtidos por meio de doações. Recentemente, a pandemia ocasionou mais um desdobramento da iniciativa original, a ação Fotografias com Poesias.
“Neste trabalho, familiares de pessoas com Covid-19 enviam fotografias das coisas que remetem ao universo afetivo dos pacientes, o setor de humanização do hospital imprime, eu escrevo poesias no verso dessas fotografias e então elas são disponibilizadas nos leitos, inclusive nas UTIs”, explica Raquel.
“É autoestima. Isso faz com que as pessoas, tendo acesso às suas memórias afetivas, fiquem mais alegres e reajam bem aos tratamentos. É comprovado cientificamente”.
As fotografias impressas são plastificadas e embaladas nas caixinhas do projeto, seguindo os protocolos de prevenção anti-Covid.
Com o uso dos tablets e das fotos blindadas, o Literatura Cura poderá avançar para outras cidades. Além de Campo Grande, a Cassems mantém hospitais em Dourados, em Aquidauana, em Ponta Porã e em mais seis municípios.
Raquel chama a entrevista inicial com o paciente de “anamnese literária”. Consiste apenas em uma conversa que lhe permite saber algumas “relevâncias da vida” de cada um.
“A partir dessas relevâncias, construo diversas modalidades literárias, que podem ser poemas, micro contos, contos, crônicas, e aí ilustro com aquarela e bordados e entrego dentro das caixinhas de medicamentos”.
As embalagens estilizadas, acredita, simbolizam o que chama de remédio da alma.
“Para fazer com que as pessoas vivam a experiência de uma internação hospitalar de um jeito diferente, onde possam se sentir acolhidas, amadas e, sobretudo, em condições de ter esperança.”
Com visibilidade crescente, o projeto vem ganhando repercussão nacional e já foi convidado para demonstrações em outros estados, como ocorreu em março de 2019, quando Raquel Anderson esteve em Brasília para apresentá-lo no Hospital Sarah Kubitschek.
Mas ela declina da posição de celebridade do bem e faz questão de repartir os louros do reconhecimento com a direção da Cassems, psicólogos e toda a equipe de colaboradores. No momento, a mensageira da esperança sonha com um documentário que possa levar adiante o seu recado e multiplicar a missão do projeto.
Essa parece ser a melhor parte de um remédio literário. Quanto mais genérico, melhor.
Com arte no hospital, todos ganham
Profissionais da área de saúde também são beneficiados com práticas de estímulo à alegria e bem-estar
Conforto, carinho, bem estar, sentimentos de confiança e partilha. A psicóloga Cleonice Medeiros enumera os diversos benefícios que as terapias artísticas podem proporcionar a quem vê a vida de um leito de hospital.
Além da arte, práticas como a meditação também seriam formas de minimizar o sofrimento emocional do paciente, estimulando sentimentos de segurança, relaxamento e redução do estresse.
“A arte e a alegria provocam o despertar das revivências de sentimentos como forma de resgate de emoções mais positivas”, afirma a psicóloga, de 47 anos, graduada pela Uniderp (2008) e especialista em clínica, psicoterapia cognitiva comportamental e terapia do esquema pela Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional (Sbie).
“Ao mesmo tempo, essa sensação agradável de saúde, e de pertencimento a um ambiente mais acolhedor, proporciona mudanças fisiológicas e as pessoas podem se sentir mais fortalecidas, esperançosas, menos estressadas ou ansiosas”.
Para a estudiosa do comportamento, “o acolhimento terapêutico que vem, por exemplo, da música, cria esse ambiente de alegria mesmo dentro de um hospital, que às vezes é um ambiente mais frio, depressivo”.
O benefício não se limita ao “enfrentamento da doença” e se estende aos que atuam profissionalmente na quase sempre tensa rotina de cuidar da saúde do próximo.
Dessa maneira, afirma Cleonice, o ambiente hospitalar torna-se “mais leve, um espaço de intersecção entre diferentes profissionais para ampliar a humanização da assistência, como também, a descontração e disposição para o trabalho”.
No mundo da arte mais autoral, artistas como a brasileira Lygia Clark (1920-1988) e o chileno Alejandro Jodorowsky desenvolveram práticas terapêuticas que utilizam técnicas e elementos expressivos, respectivamente, das artes plásticas e do cinema, tornando, assim, imprecisos os limites entre processo de cura e expressão artística.
Expoente do neoconcretismo e estudiosa da psicanálise, Lygia concebeu, durante a década de sessenta, as Máscaras Sensoriais e outros dispositivos de imersão.
Radicado na França, Jodorowsky nasceu em 1929 é o criador da psicomagia, apresentada em livro (2009) e filme (2019), que se propõe ao expurgo de fantasmas pessoais com o paciente-intérprete no papel de si mesmo e consulta à sua árvore genealógica.

As pinturas de Isabê também estarão na Casa-Quintal 109 de Manoel de Barros, museu na antiga residência do poeta, no Jardim dos Estados - Foto: Divulgação


Filme lança hoje - Foto: Divulgação


