Nas duas últimas décadas, o jogo de forças do cinema brasileiro mudou bastante. É durante esse período, demarcado pela retomada da produção ocasionada pelas leis de incentivo e outras políticas públicas, que a polarização Rio-São Paulo como eixo produtor dominante sofre abalos significativos.
De diferentes maneiras, e conjugando forma, conteúdo e modelos de tocar as produções adiante, Pernambuco e outros estados renovaram a cena.
Com o longa-metragem “Madalena” (2018/2021), parece ter chegado a vez de, finalmente, o cinema sul-mato-grossense dizer a que veio no contexto do que já pode ser chamado de pós-retomada.
O filme do diretor Madiano Marcheti, que nasceu em Mato Grosso, impressiona, entre outros aspectos, pela forma original, despojada e esteticamente rica com que põe em movimento a história a se contar.
Aliás, antes da estratégia narrativa, talvez seja importante sublinhar o assunto do qual a trama se ocupa.
Uma cartela no final – informando ser o Brasil o país que mais mata transexuais e travestis – consolida o tema e posiciona “Madalena” como uma espécie de periscópio da realidade bruta que grassa em território nacional, aqui vista sob o viés da intolerância contra a diversidade e a diferença de gênero em relação à heteronormatividade machista reinante.
COR LOCAL
O primeiro ponto a se destacar é, justamente, o modo como o filme elege e vai cercando o assunto, cravando o seu ataque ao horror com sobriedade, sem perder potencial de envolvimento, graças a uma linguagem arejada, que se permite burilamentos ao investir, com segurança, na cor local do cenário escolhido – e, tanto quanto possível, com leveza até – para a condução de uma trama que, afinal, é de assassinato.
Vamos ao enredo. Um dia, um corpo sem vida aparece caído em um campo de soja. É o corpo de Madalena. Três personagens que não se conhecem vão se relacionar com essa morte de diferentes maneiras.
Luziane (Natália Mazarim) trabalha como hostess de uma boate e vai até a casa da vítima receber um pagamento; Cristiano (Rafael de Bona) é o agroboy que esbarra no corpo enquanto passa em revista a plantação na propriedade que vai herdar do pai; e Bianca (Pamella Yule) é a trans, amiga de Madalena, que fica responsável pelo delicado réquiem a que o personagem-título faz jus no roteiro.
À medida que perfila o trio, o roteiro – que leva a assinatura do diretor, de Helena Vieira e de mais três escritores (Thiago Gallego, Thiago Coelho e Thiago Ortman) – abre-se ao varejo do universo dos personagens e à rotina do lugar.
A história expõe, assim, o funcionamento de uma cidade, do Centro-Oeste brasileiro, que afiança a própria identidade na exaltação da monocultura mecanizada da lavoura e de valores sociais, políticos e, enfim, humanos que, mesmo carregada nas tintas de uma representação de forte acento localista, retrata muito bem um estado de coisas que não deixa de ser brasileiro, muito pelo contrário.
MÁQUINAS
O lugar da ação é Dourados. A capital da soja aparece na tela, com sua pujança agro, sem esconder a monstruosidade de um “way of life” pautado por abusos de poder e frestas de respiro que flagram uma sociedade disfuncional e envolvem do uso de anabolizantes aos borrachões, nome que se dá à prática de vários motoqueiros fazerem encontrar, ao mesmo tempo, as rodas dianteiras de suas motos para, então, acelerar ao máximo, fazer muito barulho e soltar fumaça.
Como acontece na vida real, o borrachão que aparece em “Madalena” é mostrado à noite, em meio a empinadas e com direito a plateia feminina, embora nem todas as mulheres queiram estar ali de verdade.
Assim como as motocicletas, o maquinário empregado na lavoura e outros equipamentos eletrônicos surgem, de tempos em tempos, como que desfigurados de sua imagem mais corrente e ordinária – tratores, colheitadeiras, pulverizadores e também drones, ou até cigarros eletrônicos.
As traquitanas, na mise-en-scène proposta, transcendem ou deslocam-se de suas funções e geram um efeito expressionista que percorre todo o filme e marca um frescor e tanto na fatura geral do longa-metragem de estreia de Marcheti.
A fotografia de Guilherme Tostes e Tiago Rios, sem inventar nenhuma roda, toma partido de alguns recursos – planos alongados e, em específico, o emprego do néon, por exemplo – para recobrar, em determinados momentos, algo de performático na atmosfera do enredo.
Curiosamente, as cenas “protagonizadas” pelas máquinas agrícolas são, ao que consta, trechos de produções institucionais que foram reaproveitadas na chave estética do filme.
ZEITGEIST
Pouco importa, originais ou recicladas, as imagens de “Madalena” causam uma estranheza que atrai e segura o espectador. Imagens no sentido do que se vê e também do que se ouve. Os climas sonoros aguçam a dilatação do tempo. Fala-se em disco voador como uma possibilidade concreta.
A sensação de mistério ronda e vai tomando conta até o desfecho da trama, que, uma vez mais, foge do lugar-comum, levando o que poderia ser um filme de crime e panfleto para bem longe do esperado.
Por mais que o (des)encontro entre os personagens e algumas intenções muito literais possam lhe custar, aqui e ali, alguns vincos no andamento, e que a presença apenas espectral da personagem-título deixe parte do público na mão, “Madalena” torna-se uma proeza porque consegue o mais difícil.
Ao mesmo tempo em que atualiza, corrói uma imagem de Brasil – e de Mato Grosso do Sul – que, defasada na pandemia transcorrida após as filmagens, permanece intacta enquanto espírito de época, o “zeitgeist” dos alemães.
FILME-DENÚNCIA?
Em plot lateral, a eleição para o Senado de uma deputada anunciada como “a escolha decente para alimentar o Brasil e o mundo” só terá sido possível pela ocultação de um cadáver encontrado pelo agroboy, seu filho, na propriedade da família.
Se essa imagem nos apavora, trabalha, por outro lado, conforme articulada no discurso do filme, contra a indiferença que cala e, portanto, ajuda a matar. O bônus criativo de “Madalena” é mandar ver na militância, embalando a causa com seus arroubos certeiros e despojamento de sobra, sendo capaz de zerar a goma que costuma endurecer um filme-denúncia.
Mereceria uma conversa à parte alguns desses arroubos. Entre eles, a trilha sonora esperta, que resgata um clássico de Tetê e Celito Espíndola (“Pirapetã”, de 1980), na voz de Tetê, ou que mostra, com outra canção popular, como é possível sambar na soja.
Ou ainda: a pegada road-movie no vai e vem das almas que percorrem ou tentam correr daquele lugar. Que assombrosamente reconhecemos como também nosso.
Ficha técnica
Diretor: Madiano Marcheti;
Elenco: Natália Mazarim, Rafael de Bona, Pamella Yule;
Roteiro: Madiano Marcheti, Helena Vieira, Thiago Gallego, Thiago Coelho e Thiago Ortman



Helio Mandetta e Maria Olga Mandetta
Thai de Melo


