“... E tu, Poesia,
antes tão desventuradamente tímida,
foste
na frente
e todos
se acostumaram ao teu traje
de estrela cotidiana...!”
“Ode í Poesia” – Pablo NerudaDiante do avanço concreto da integração latino-americana – que já não habita apenas o campo diplomático, mas se realiza como experiência concreta por meio da Rota Bioceânica, unindo Brasil, Paraguai, Argentina e Chile –, impõe-se um novo desafio: o de integrar não apenas territórios, mas também memórias, vozes e sentimentos. A travessia mais profunda não se fará por caminhões, mas por palavras. E é nesse ponto que a poesia se torna ponte.
Antes que os trilhos estejam prontos, que as aduanas se abram e os fluxos se intensifiquem, é preciso que as almas estejam preparadas para o convívio. E quem melhor do que os poetas para iniciar essa travessia? O livro “Poetas da América de Canto Castelhano”, de Thiago de Mello, Global Editora, surge como instrumento sensível e necessário para esse momento histórico. Mais que uma antologia, é um chamado à escuta, à partilha e à reverência pelas vozes de nossos hermanos – uma convocação que ressoa com ainda mais urgência agora que a convivência latino-americana se avizinha, não como ideal distante, mas como realidade palpável.
É a partir dessa consciência que o texto a seguir foi escrito: como gesto de acolhimento e compromisso. Um ato de devolução ao público local – leitores, educadores, semeadores, militantes da cultura – do sopro poético de uma América Latina que, embora plural, partilha um destino comum.
A obra “Poetas da América de Canto Castelhano”, de Thiago de Mello, não é apenas um livro – é um chamado. Um chamado que não se cumpre por obrigação, mas por reverência. Não é meta, é missão. Missão de quem reconhece, na poesia, o lugar primeiro da escuta, da comunhão e da memória.
A nós, que habitamos o território sutil da literatura, cabe o dever sereno e entusiasmado de abrir essas páginas como quem abre fronteiras. É leitura que não se faz sozinho, mas em voz alta, como partilha. Porque esses poetas da América, cantores do castelhano e do continente, nos convocam a preparar o espírito para a realidade que já desponta.
Sim, ela vem – e vem a passos largos: a realidade sonhada da integração latino-americana. Em breve, viveremos mais próximos, não apenas geograficamente, mas espiritualmente, dos hermanos, e o que nos unirá mais profundamente senão o verbo sensível da poesia?
Seremos todos vizinhos de palavra, irmãos de metáfora, companheiros de versos. E ler “Poetas da América de Canto Castelhano” é, desde já, ensaiar esse convívio. É construir, no silêncio da leitura, a ponte sonora da fraternidade.
Há obras que não apenas se escrevem: se cumprem. “Poetas da América de Canto Castelhano”, de Thiago de Mello, é uma dessas. Não basta lê-la – é preciso habitá-la. Foi nesse gesto de posse poética, não como apropriação, mas como acolhimento, que me vi diante de um chamado: trazer ao público de minha cidade, de meu estado, o sopro dos versos latino-americanos já cantados por Thiago de Mello, dando-lhes nova morada entre nós.
Vivemos às portas de um novo tempo. A Rota Bioceânica – ou Rota da Integração Latino-Americana – já não é apenas traço em mapa ou utopia diplomática: é caminho em construção, concreto, viável, que nos colocará frente a frente com nossos hermanos do Paraguai, da Argentina, do Chile. Caminharemos juntos – mas, de que adiantaria o caminho físico, se não pavimentarmos antes o caminho do espírito?
A América Latina é uma região marcada por sua diversidade cultural, linguística e histórica, construída a partir de múltiplas vozes e experiências. É uma realidade ainda em formação, com desafios sociais e políticos profundos, mas também com enorme potencial de integração e cooperação. Seus povos compartilham raízes comuns e histórias entrelaçadas por lutas, esperanças e resistência. Reconhecer essa pluralidade e fortalecer os laços entre as nações vizinhas é essencial para que avancemos juntos de forma mais consciente e solidária.
Assim nasceu este trabalho: mais do que escolha, um dever. Destaquei os três países que serão protagonistas nesse traçado geográfico e afetivo – Chile, Argentina e Paraguai –, e neles busquei, sob a luz de Thiago de Mello, os poetas que esculpiram, com palavras, o templo da sensibilidade continental.
Ali estão, na Argentina, Jorge Luis Borges, Cristina Castello, Raúl Gonzalez Tuñón; no Chile estão Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Violeta Parra; e no Paraguai está Elvio Romero. A esses, é urgente somar a poesia brasileira com sua beleza plural e singular, sua música entranhada de rios, sertões e florestas. Porque não haverá integração legítima sem reconhecimento recíproco de culturas, sem escuta mútua de nossas vozes fundadoras.
A poesia, aqui, não é ornamento: é passaporte. É ponte invisível que nos faz compreender o outro antes mesmo de sabermos seu idioma. Integrar-se é mais do que cruzar fronteiras – é comungar destinos.
Este escrito – esse ato de revelação e entrega – é minha pequena oferenda. É a forma que encontrei de preparar nossa alma coletiva para esse convívio iminente com povos que, embora vizinhos, ainda nos são desconhecidos em sua tessitura mais profunda. E quem melhor do que os poetas para nos apresentar uns aos outros?
Que a poesia de canto castelhano encontre eco em nosso canto brasileiro. Que os Andes e o Pantanal, o Gran Chaco e a Serra do Mar, o guarani e o português, tudo isso se reúna em um só sopro de fraternidade e beleza. Porque a América Latina é, antes de tudo, um poema em construção. E cabe a nós, leitores e caminhantes, sabê-lo de cor – com o coração.
“... Às vezes pelas tardes certo rosto
Contempla-nos do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nosso próprio rosto”.
“Arte Poética” – Jorge Luis BorgesOs versos de Borges mostram a arte como espelho profundo, capaz de revelar quem somos e quem podemos ser. Assim também é a literatura latino-americana: ao nos apresentar o outro, ela nos devolve a nós mesmos. A Rota Bioceânica, mais que conexão física, deve ser espelho de identidades – uma via simbólica em que a poesia nos ajude a reconhecer, no outro, um reflexo de nós.
“... Penso, asilado no extenso das estações,
central, rodeado de geografia silenciosa:
uma temperatura parcial cai do céu,
um extremo império de confusas unidades
se reúne me rodeando”.
“Residencia em la Tierra” – Pablo NerudaNo poema “Residencia en la Tierra”, Neruda expressa o sentimento de estar isolado em meio a um continente vasto e fragmentado. Essa imagem dialoga com a proposta da Rota Bioceânica como ponte literária: romper o silêncio entre nações com raízes comuns. Levar a poesia latino-americana ao público brasileiro é transformar o isolamento em vizinhança simbólica e construir, pela palavra, um continente que se reconhece mutuamente.
“... Mil vezes tive que caminhar a teu lado
E regressar mil vezes. Teria acaso a predestinação
desta terra, a de todos os homens, e as coisas
deste solar... A história do meu coração...”
Elvio RomeroNos versos de Elvio Romero, a caminhada recorrente simboliza a busca por pertencimento e reencontro com a terra. Essa ideia se alinha à Rota Bioceânica, entendida não só como via física, mas como chance de renovar os laços culturais entre países. A interação literária torna-se, assim, uma travessia simbólica: redescobrir, por meio da poesia, uma história comum e construir um território compartilhado de palavras.
“Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas...”
“Mãos Dadas” – Carlos Drummond de AndradeNos versos de “Mãos Dadas”, Drummond rejeita o passado e o futuro abstratos, optando por viver o presente ao lado dos companheiros, com lucidez e esperança. Essa postura ecoa o espírito da Rota Bioceânica, que propõe mais que uma conexão física: uma travessia conjunta entre povos, unindo vozes e destinos. Ao afirmar “vamos de mãos dadas”, o poeta antecipa o gesto de integração real e simbólica que a literatura pode realizar no coração da América Latina.
*Ensaísta e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.



Helio Mandetta e Maria Olga Mandetta
Thai de Melo


