“O entrosamento gera o groove”. A frase do guitarrista Hélio Delmiro, um dos mais respeitados musicistas da MPB, guarda uma espécie de chave para entender o que ocorreu no estúdio MGM, em Los Angeles, na Califórnia, entre fevereiro e março de 1974, quando Elis Regina e Tom Jobim se encontraram para gravar o cultuado disco “Elis & Tom”.
Delmiro viajou com a cantora e com o músico e arranjador Cesar Camargo Mariano como integrante de sua banda. “Quando eu soube que vinha uma guitarra, eu queria parar o avião no ar”, teria dito Tom Jobim durante as gravações do álbum. Ele teria sido resistente àqueles jovens músicos que queriam usar instrumentos elétricos. Na época, o maestro já consagrado internacionalmente estava com 47 anos.
Essa e outras histórias agora são destrinchadas no tocante documentário “Elis & Tom –
Só Tinha de Ser com Você”, do diretor Roberto de Oliveira. O filme estreia em circuito comercial hoje, após ter percorrido festivais no Brasil e no mundo.
O disco “Elis & Tom” foi um presente da gravadora Philips para Elis por seus 10 anos de contrato com a companhia. Oliveira, empresário da cantora à época, acompanhou tudo de perto. Inclusive, foi ele quem sugeriu o nome de Tom Jobim para o projeto – Caetano Veloso foi outro cogitado –, tendo viajado para Los Angeles a fim de filmar os bastidores da gravação.
Parte desse registro foi exibido pela TV Bandeirantes naquele mesmo ano. A outra ficou guardada por quase
50 anos até se tornar esse documentário e finalmente vindo a público.
Tratando-se de um making of da gravação de um disco brasileiro histórico, o longa é uma peça única. São cenas de ensaio, gravações e conversas entre os envolvidos que agora podem ser vistas graças a um cuidadoso processo de restauração de som e imagem.
Oliveira, que trabalhou com grande parte dos artistas da MPB diz, com tranquilidade, que o projeto ocorreu na hora certa.
“Havia muita cobrança. Mas algo me dizia que quanto mais tempo demorasse, melhor ficaria. E realmente essa distância temporal fez com que o filme se apresentasse pronto para mim”, comenta.
Um dos caminhos que o documentário segue é justamente contar como o conflito inicial entre Tom Jobim, Elis Regina e Cesar Camargo Mariano, que assinou boa parte dos arranjos do disco, foi se dissipando com o passar dos dias.
Isso porque houve um período turbulento, ainda fora de estúdio, quando Mariano começou a realizar seu trabalho de arranjador. A pressão de Jobim era tanta que Elis chegou a fazer as malas para voltar ao Brasil. Porém, Oliveira a convenceu a ficar – ainda bem.
“Elis & Tom – Só Tinha de Ser com Você” é um filme sobre um disco, mas também sobre como a música pode derrubar barreiras aparentemente intransponíveis.
Por vezes, é possível perceber o que estava ocorrendo pelo olhar, pelos gestos e pelas expressões tanto de Elis, Jobim, Mariano, quanto dos músicos. Em outras, tudo é verbalizado. Quem assiste agora tem a sensação de que a tensão entre eles pode mandar tudo pelos ares a qualquer momento, mesmo sabendo que o disco foi de fato gravado.
Mas não. O armistício entre Jobim, Elis e Mariano produziu 14 faixas que entraram para a história, entre elas, o dueto em “Águas de Março”. Jobim aceitou o piano e a guitarra elétricos. Elis, com suas interpretações mais explosivas, respirou calmamente entre os compassos da música do maestro. Tudo sob o comando do produtor Aloysio de Oliveira, amigo de Jobim e seu porto seguro.
“Por esses dias soube que esse era o disco preferido do Tony Bennett”, conta Oliveira. No documentário, o técnico de som Humberto Gatica, que estreou na função nesse disco, diz que mostrou, certa vez, o álbum à cantora Celine Dion – e ela ficou maravilhada com o que ouviu, segundo conta.
Oliveira acredita que a tensão que marcou as gravações do álbum foi natural. “Contribuiu para a criatividade. É a emoção, o sentimento dos humanos, que aflora e se transforma em música. Mesmo com todas as discussões que envolvem o processo, ninguém tira o olho do objetivo final, que é chegar a uma obra de arte. E isso eles conseguiram”, enfatiza.
Para ele, o tempo e a ida para o estúdio após o período de feitura dos arranjos ajudaram a acomodar tudo. “Quando os talentos de Elis e Jobim se reconheceram, eles se entenderam. Foi uma paixão”, crava.
O documentário extrapola a história do disco. Situa Tom Jobim e Elis Regina como artistas, tudo para mostrar a importância dos dois para as novas gerações, conforme o diretor.
No caso de Elis, não à toa, chega em outro disco que ela não nunca gravou: um projeto ao lado do músico americano Wayne Shorter, em 1981. Aqui, um outro conflito, também com Mariano envolvido, o qual não teve a bandeira branca hasteada.
Com essa abordagem, o longa entra em um assunto paralelo, mas, ao mesmo tempo, pertinente: como poderia ter sido a carreira internacional de Elis, sobretudo sua entrada no mercado americano, na qual Tom fez tanto sucesso? A primeira tentativa disso foi justamente por meio de “Elis & Tom”.
“Todo mundo achava que Elis seria uma cantora de sucesso internacional. Para isso, ela teria que cantar em inglês, ficar seis meses morando fora e começar praticamente do zero. Mas ela não quis”, relata o diretor.
Já a segunda investida foi em sua apresentação no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, em 1979. Naquele momento, a indústria fonográfica buscava nomes para renovar seu casting. Algo como uma Dionne Warwick para viajar o mundo se apresentando.
A terceira tentativa seria o disco com Shorter, cerca de um ano antes dela morrer, aos 36 anos. Se o álbum com o músico americano tivesse se concretizado, o destino de Elis poderia ter sido diferente?
“Pode ser. Ela estava em um nível de perfeição incrível.
As possibilidades para Elis no Brasil já haviam se esgotado. Além de Shorter, ela trabalharia com Ron Carter e Herbie Hancock, nada menos do que três músicos do quinteto de Miles Davis”, opina Oliveira.
Para o diretor, Elis era uma pessoa que vivia de desafios profissionais. Sem eles, a cantora entrava em parafuso.
“A Elis tinha a música como a coisa mais importante de sua vida. Quando estava tudo bem na música, o resto corria bem também. Mas ela não foi feliz. Uma pessoa que morre aos 36 anos, no auge da carreira...
Foi trágico”, finaliza.

Helio Mandetta e Maria Olga Mandetta
Thai de Melo


