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Modernidade e atraso

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

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Não é fácil sair do estado de inércia sob estruturas arcaicas que ligam o Brasil ao passado. Donde emerge a questão: que tipos de reformas se fazem necessárias para fazer avançar o País em sua trilha civilizatória? As indicações para se obter um estágio de modernização, de maneira quase consensual, assinalam para as necessidades de reformas do sistema político-partidário eleitoral, da estrutura do Estado, com a respectiva redefinição de atribuições e melhor divisão de competências entre os três poderes, do sistema tributário fiscal e da previdência, reformas consideradas como prioritárias para redimensionar o perfil institucional do País.

Mas isso não é coisa muito vaga, um devaneio, uma chegada ao topo da montanha sem enfrentar o percurso vertiginoso do caminho? Sem dúvida, parece sonho. E como iniciar esse trajeto? Ora, fazendo coisas como o que se fez no domingo passado, ou seja, usando a ferramenta de poder do eleitor, o voto, para mudar a moldura da parede. Por isso, o processo eleitoral é importante. Quanto mais eleições, melhor para a democracia.

Urge mudar a fisionomia cultural do País. Tarefa complexa. De início, uma breve explicação. O sociólogo inglês Thomas Humphrey Marshall, em sua obra, diz que o desenvolvimento da cidadania depende de três elementos, surgidos e afirmados cada qual em um século diferente: os direitos civis teriam se formado no século 18, os direitos políticos, no século 19 e os direitos sociais, no século 20. A pirâmide, portanto, tem no topo os direitos civis, o direito à livre expressão, o direito à propriedade, o direito à associação, etc.

No Brasil, ocorreu uma inversão dessas categorias. Getúlio Vargas, na década de 1930, começou a lapidar a pirâmide com os direitos sociais, a partir da febre de criação de sindicatos. No fundo, queria atrair a base de trabalhadores para seu intento ditatorial. Depois, garantiu ao País os direitos políticos, com a agenda eleitoral, o voto. Por último, vieram os direitos civis, aqueles que iniciavam a tríade inglesa da cidadania. A pirâmide varguista cunhou o conceito de estadania, na expressão do historiador José Murilo de Carvalho. A cidadania sob o escudo do Estado.

Com a estadania, descortina-se a paisagem do Estado protetor e provedor, que, na simbologia usada pelo escritor e embaixador J.O. Meira Penna, em sua obra “Em Berço Esplêndido”, ganha o nome de vaca leiteira, com as tetas que oferecem leite aos brasileiros. Acostumamo-nos a buscar a vaca, na crença de que ela tem a obrigação de saciar a sede dos nativos. A mamata se espraia. E finca em todos os espaços do território as raízes da cultura paternalista.

Mudar essa cultura é tarefa que demanda tempo, muito tempo. Ao fundo, esculpida no inconsciente coletivo, a imagem de que o Estado tem a obrigação de nos salvar. Ora, essa é a barreira que impede avanços rápidos em nossa caminhada. E que atrapalham a criação de novos padrões de organização social e produtiva. Mesmo assim, por mais bem-feitas, eventuais reformas não conseguirão gerar resultados suficientes para alterar, de modo profundo, a fisionomia cultural do país.

Como se induz, há de se considerar o alto grau de canibalização de nossa cultura política. Reformas, mesmo as mais profundas, tendem a cair na garganta da homogeneização cultural. Com o tempo, perdem vigor, criam anticorpos e, após determinado ciclo, geram vírus (incluindo os jabutis) que as desfiguram por completo. Por trás dessa questão, há outra: as elites costumam promover reformas com a intenção de ajustá-las mais às suas necessidades do que às demandas sociais.

A reforma do sistema político-partidário eleitoral poderá, por exemplo, melhorar a representatividade dos agentes, qualificando os quadros, redefinindo a proporcionalidade entre os Estados, de acordo com o princípio das densidades eleitorais; podem estabelecer um tipo de voto que traduza, com fidelidade, as reivindicações das comunidades; aperfeiçoar o perfil partidário, por meio de normas mais rigorosas para criação de partidos e formação de corpos doutrinários mais densos ou clarificar as campanhas, com disposições sobre financiamentos.

Tudo isso terá sua importância, mas não seriam suficientes para resolver questões de fundo. O ajuste nas regras do jogo não significa necessariamente melhoria da qualidade dos parceiros. O eleitor, em qualquer sistema ou sob qualquer regra, continuará a ser manipulado. A incultura política de imensos contingentes continuará dando espaço a uma categoria de representantes desqualificados.

Significa intuir que a modernização do País, vista pelo prisma das chamadas reformas clássicas, cobrirá apenas parcelas da sociedade, sistemas e setores da burocracia estatal, e terá, como contrapeso, a marginalidade de cordões periféricos, o chamado território dos excluídos dos benefícios da civilização. Continuaremos a ter um Brasil franksteiniano, ilhas de modernidade e racionalidade com mangues de ignorância e miséria. Ou seja, reformas feitas por cima apenas protelarão o desenvolvimento integral e autossustentado do País.

Por último, sinaliza-se uma pista: a reforma da Educação Básica. Urge olhar para a escola pública deteriorada. Milhões de brasileiros permanecem fora do sistema educacional. Medidas paliativas, como as de combate à fome e à miséria (Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida) e congêneres, dentro de uma visão meramente assistencialista, podem ter méritos, no curto prazo, minorando o desespero que se alastra em alguns espaços. Jamais, porém, quebrarão os elos que prendem o País ao passado e que escancaram traços de uma comunidade que participa da fila dos cultivadores da mamata. Programas utilitaristas, de aplicação imediata, ou reformas de elite, para atender o clima das circunstâncias e a gritaria dos contrários, são apenas reboco nas paredes da crise.

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Detran: a chave para destravar a recuperação extrajudicial de garantias

Renata Herani, cientista política e diretora de Relações Institucionais, Comunicação e Marketing da Tecnobank

14/10/2024 07h45

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O Marco Legal das Garantias, introduzido no fim do ano passado pela Lei nº 14.711/2023, trouxe uma promessa de modernização e agilidade para o mercado de crédito no Brasil, especialmente na recuperação de veículos dados em garantia. Ao permitir que essa recuperação fosse feita extrajudicialmente, o legislador abriu caminho para um processo mais rápido, menos oneroso e mais eficiente. No entanto, para que essa mudança alcance pleno potencial, é preciso um passo importante: a regulamentação pelos Detrans. Felizmente, esse é um desafio que, embora pareça complexo, pode ser superado com relativa facilidade e rapidez.

A lei busca simplificar um processo que, no modelo judicial atual, é notoriamente lento e ineficiente. Hoje, o credor que deseja recuperar um veículo enfrenta um caminho cheio de obstáculos: longos prazos processuais, altos custos e uma burocracia que, em última análise, prejudica tanto as instituições financeiras quanto os consumidores. O Marco Legal das Garantias oferece uma alternativa mais rápida e direta ao permitir que a recuperação seja feita de forma extrajudicial, um método que já mostrou sucesso no setor imobiliário e agora se expande para veículos e outros bens móveis. Para os Detrans, que já têm boa parte da estrutura necessária, a adaptação a essa nova realidade não é uma tarefa complexa, mas, sim, uma questão de ajustes.

O papel das registradoras nesse contexto é fundamental. Elas funcionam como um elo entre os Detrans e as instituições financeiras, sendo responsáveis por centralizar as informações e garantir a fluidez do processo. Ao conectarem dados e etapas envolvidas na recuperação extrajudicial, as registradoras já oferecem a infraestrutura tecnológica e a segurança necessárias para o novo modelo. O que falta, então, é a regulamentação específica por parte dos Detrans, que precisam detalhar como essas transações acontecerão, adaptar seus sistemas e credenciar as empresas já atuantes no registro de contratos para também executar a recuperação extrajudicial.

A maioria dos Detrans já conta com empresas de tecnologia credenciadas para o registro de contratos de financiamento, e a extensão dessas operações para a recuperação extrajudicial é um ajuste que poderia ser feito em poucos meses. Trata-se de adaptar alguns campos nos sistemas já existentes e produzir a regulamentação necessária, algo perfeitamente viável com um esforço coordenado e direcionado.

O que parece um grande desafio é, na verdade, uma oportunidade para os Detrans demonstrarem eficiência e alinhamento com as necessidades da economia. Com a regulamentação adequada, o custo e o tempo para recuperação das garantias cairiam significativamente, o que impactaria diretamente nas taxas de juros e no valor das parcelas, tornando o crédito mais acessível para a população. Esse efeito cascata beneficia não apenas os consumidores e as instituições financeiras, mas também o mercado de veículos como um todo e, inclusive, o meio ambiente, incentivando a renovação da frota e a retirada de circulação de veículos em mau estado.

É compreensível que a internalização da lei e o entendimento do papel dos Detrans no novo modelo levem algum tempo, mas o momento é propício para uma tomada de decisão. O Marco Legal das Garantias vai fomentar o crescimento econômico, e os Detrans têm a chave para destravar esse processo. Assim, é possível alcançar a eficácia da lei e promover um ciclo virtuoso de crescimento e inovação no mercado de crédito. Vale ressaltar que nos países em que esse modelo de execução já está implementado, as taxas de juros praticadas são menores.

Os Detrans devem, portanto, liderar uma transformação que já está, tecnicamente, a meio caminho de se concretizar. A tarefa é perfeitamente possível e, com foco e priorização, pode ser realizada em um curto prazo. Desta maneira, os Detrans mostrarão que estão alinhados ao futuro e preparados para implementar uma mudança que produzirá efeitos benéficos para toda a economia.

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Campo Grande pode retomar o protagonismo econômico de MS?

Mateus Boldrine Abrita, doutor em Economia pela UFRGS, pós-doutor em Administração Pública pela UFMS e professor efetivo na UEMS

14/10/2024 07h30

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Apesar de apresentar uma taxa de desocupação análoga ao pleno emprego, o que é muito bom e difícil de alcançar, a economia de Campo Grande enfrenta desafios para acompanhar o dinamismo de crescimento do produto interno bruto (PIB) observado no estado de Mato Grosso do Sul.

Segundo dados das contas regionais do IBGE (2024), MS registrou uma taxa de crescimento real anual de 6,1% entre 2002 e 2021 (último dado disponível). Já a Capital apresentou um crescimento em torno de 4% no mesmo período. No intervalo de 2017 a 2021, o Estado manteve um crescimento real anual de 3%, enquanto Campo Grande sofreu uma leve retração econômica real.

Essa redução marginal foi um reflexo natural dos efeitos da pandemia. No entanto, a despeito disso, os dados indicam que, estruturalmente, a Capital tem crescido abaixo da média estadual em diferentes governos, administrações, períodos e ciclos econômicos nacionais.

Nesse contexto, o Atlas de Complexidade Econômica de Harvard 1 pode oferecer caminhos relevantes para acelerar a prosperidade econômica da Capital. Desenvolvido pela Harvard Kennedy School, o Atlas é uma ferramenta premiada de visualização de dados que permite explorar fluxos comerciais globais, acompanhar sua evolução ao longo do tempo e identificar novas oportunidades de crescimento para cada região.

Com base nas análises de complexidade econômica, as oportunidades de crescimento econômico que podem ser exploradas nos próximos anos em Campo Grande incluem os setores de: serviços de hotelaria, alimentação, eventos, shows, artes, entretenimento e recreação; serviços educacionais; indústrias financeiras e de seguros; serviços de saúde ambulatorial e hospitalar; indústria alimentícia e produtos relacionados à agroindústria; serviços de locação e leasing; indústria moveleira e produtos de madeira, vestuário, bebidas; economia criativa e setores correlacionados; bem como serviços relacionados à ciência, à tecnologia, à inovação e a consultorias especializadas.

Portanto, a adoção de políticas econômicas fornecendo infraestrutura adequada, desburocratização, regulação e incentivos voltados para esses setores e áreas correlacionadas pode ser um caminho para que Campo Grande retome um crescimento econômico mais dinâmico nos próximos anos.

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